Será a literatura infantil território propício para acolher histórias de guerra ou histórias duras de vida como as dos milhares de migrantes e refugiados que todos os dias nos entram em casa carregando a vida às costas, sem horizontes definidos?
A GUERRA ENTRISTECE, ESMAGA E CALA.
A mediatização do mundo transformou em lugar comum a expressão "tudo está ao alcance de um clique". A criança de hoje cedo convive com acontecimentos trágicos sem que, muitas vezes, o adulto ao seu lado disso se aperceba. Não há censura possível sempre que temos uma televisão ligada e as imagens de destruição e violência, de que os conflitos e as guerras se alimentam, nos entram em casa. O livro pode acordar os seus medos, é certo, mas também a faz pensar, questionar e refletir sobre realidades que, mais cedo ou mais tarde, irá conhecer. Afinal, não é nisso, que todos nós, adultos, acreditamos? Que o poder da literatura, enquanto geradora de um fazer pensar e de um fazer questionar, é formar pessoas que saibam pensar por si, com capacidade para dizer não e transformar o mundo num lugar melhor?
A GUERRA TOMA A FORMA BRUTAL DE TODOS OS MEDOS
As crianças devem saber que o mundo está povoado também de coisas más e estar preparadas para elas. A frase é de Tomi Ungerer, nome grande da LIJ. Não há temas proibidos na literatura, o leitor tem de ser respeitado, independentemente do seu tamanho ou idade. Maurice Sendak, outro vulto da literatura, afirmava que não podemos subestimar a inteligência das crianças. A sua capacidade de assimilar informação, de a pensar à sua maneira, de questionar tudo e todos com genuína curiosidade.
A GUERRA NUNCA FOI CAPAZ DE CONTAR HISTÓRIAS
A Guerra, com texto de José Jorge Letria e ilustrações de André Letria ( ed. Pato Lógico) é um desses livros onde ninguém deve ficar à porta. Crianças, jovens e leitores adultos têm aqui uma ponte de excelência para um dos temas mais inquietantes da humanidade. Recentemente seleccionado para o White Ravens 2018, catálogo anual da Biblioteca Internacional da Juventude, a maior e mais prestigiada biblioteca de literatura infanto-juvenil do mundo, o livro transporta-nos numa viagem sombria e solitária.
A GUERRA NÃO OUVE, NÃO VÊ E NÃO SENTE.
O texto compõe-se de 17 frases curtas, onde tudo parece caber, dispostas a cada dupla página e começando invariavelmente por " A Guerra...". As poderosas e magistrais ilustrações de André Letria, em tons sombrios e negros, vão contando, em paralelo, a essência da guerra. A paleta de cores esgota-se com os castanhos e cinzas que mostram os seus efeitos devastadores. Porque a guerra tem todos os rostos da maldade que impõe. Não há rostos. Não há tempo nem lugar determinados. Pelo meio, há silêncios.
A GUERRA TEM SONHOS DE GLÓRIA QUE TUDO INCENDEIAM.
É um livro poderoso. Que nos deixa, progressivamente, sem fôlego. A cada virar de página, o leitor é confrontado com um cenário onde pontificam bombas, aviões, armas... Mas também com a sua pequenez, a sua impotência perante a destruição. De livros, de florestas, de cidades, de gentes. Seguramente, uma das nossas escolhas em 2018.
UMA LONGA VIAGEM
Reflectir sobre a guerra e sobre todo o mal que ela pode causar é, muitas vezes, a forma mais assertiva de responder às questões colocadas pelos mais novos sobre as razões que levam milhões de pessoas a migrar, deixando para trás família, amigos, casa, escola, pertences...
– É hora de partir, pequena.
– Porquê, mamã? –
O frio está a chegar e não podemos ficar aqui.
– Então para onde vamos?
– Para sul
Uma Longa Viagem, com texto de Daniel H. Chambers e ilustrações de Federico Delicado, editado pela Kalandraka, é um livro que nos inquieta da primeira à ultima página. Silenciosamente, o leitor percebe, desde o inicio, que esta é uma história de duas famílias, de duas viagens que se iniciam em paralelo.
– Preparem-se, temos que ir embora!
– Para onde papá?
– Não sei, mas para algum sítio longe daqui.
– Porquê?
– Porque a guerra já começou.
Os destinos são diferentes. Enquanto a mãe gansa e a sua cria rumam para Sul fugindo ao inverno rigoroso, uma família inicia a sua fuga da guerra, em direcção ao Norte. O sentido contrário da rota não exclui, antes evidencia, as coincidências entre os voos e os passos destes viajantes perante as intempéries e as adversidades que vão encontrar. Desde logo, o medo e a recusa dos mais pequenos em partir. Mas também o tempo, a fome, o cansaço, os encontros indesejados... A viagem, porém, vai clareando as diferenças na forma de solucionar as contrariedades.
A intensidade e o realismo das ilustrações de Federico Delicado, que já conhecemos de Ícaro, também editado pela Kalandraka, levam o leitor a percorrer, cá em baixo, os anseios, a tristeza, a fome, o cansaço, a angústia, o desalento... que marcam definitivamente o percurso das famílias em fuga. Mas também a voar à boleia das asas das aves que, naturalmente, buscam um novo paradeiro.
Uma viagem repleta de metáforas, que evidenciam a luta e a coragem de quem é obrigado a trilhar estes caminhos. Em busca de paz. Em busca de um lugar que os mais pequenos possam voltar a chamar de casa. Onde ainda caibam os sonhos.
Por fim, a chegada ao mar. O ponto para onde ambas as rotas convergem e se cruzam. O medo volta a tomar conta de todos. Ao leitor resta uma única certeza. Embora todos alcancem a margem que ansiavam, aquilo que os espera será completamente diferente.
Um livro marcante, para partilhar com leitores de todas as idades. Uma das nossas escolhas em 2018.
A VIAGEM
Como será deixar tudo para trás e percorrer quilómetros e quilómetros rumo a um destino longínquo e estranho?
A interrogação pode ler-se na contracapa do livro A Viagem, de Francesca Sanna, editada entre nós pela Fábula. Um livro tão delicado quanto intenso, que nos desassossega e comove da primeira à última página. Um relato emocionante de uma mãe que, fugindo da guerra, parte com os dois filhos numa viagem feita de medos, perigos e incertezas.
Costumavam ser uma família igual a tantas outras. Viviam numa cidade junto ao mar, iam à praia aos fins de semana... Um dia, a guerra chegou e tudo se desmoronou. Sem aviso, levou-lhes o pai. Contada por uma das crianças, esta é uma história como a de tantas outras famílias que atravessam o Mediterrâneo rumo à Europa.
Magistralmente ilustrada, é pela leitura visual que ficamos a conhecer grande parte dos detalhes dos dias que antecederam a fuga, como a busca que a mãe faz para se documentar sobre o novo país para onde leva os filhos, a dolorosa despedida do gato...
Carro, bicicleta, camioneta, a pé... são as imagens que, mais uma vez, nos dão conta do sofrimento que vão experienciando, escondidos de tudo e de todos nas florestas das noites escuras. Mas também da coragem de que necessitam. Para enfrentar o medo, aqui tão bem personificado por esse assustador guarda gigante que os manda de volta à floresta, e toda a espécie de perigos.
À noite, as crianças redobram os medos. Os braços da mãe, que não tem medo de nada, são o seu porto seguro. Mas, ao leitor não passa despercebida, através de uma notável dupla de imagens, o momento em que as crianças adormecem e a mãe pode finalmente chorar.
A Viagem é, na verdade, uma história sobre muitas viagens, e c começou com a história de duas raparigas que conheci num campo de refugiados em Itália. Depois de as conhecer, apercebi-me de que havia algo muito poderoso por trás da sua viagem.
O pequeno texto consta de uma nota da autora, onde Senna termina, acrescentando:
Quase todos os dias ouvimos nas notícias as palavras "migrantes" e "refugiados", mas raramente se fala das viagens pessoais que eles tiveram de fazer. Este livro é uma colagem de todas essas histórias de vida e da extraordinária força dos seus protagonistas.
A esperança resiste. À espera do dia em que voltem a encontrar uma casa, onde possam recomeçar a sua história, as suas vidas.
Também aqui os pássaros os acompanham, migrando para outro destino. A diferença, como se diz no texto, é que eles não têm de atravessar fronteiras.
A Viagem é uma das nossas escolhas em 2018. Acima de tudo, é um livro que passámos a acompanhar em permanência junto dos nossos leitores de todas as idades.