sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Olá Farol! Uma travessia desejada


Olá Farol de Sophie Blackall, o livro vencedor da Caldecott Medal em 2019, chegou a Portugal pela mão da editora Fábula. Em Maio, escrevíamos aqui sobre Hello Lighthouse, a edição original que tínhamos trazido  na mala depois de uma viagem pelos faróis do Canadá. Manifestávamos, igualmente, o desejo de o ver em português. Hoje festejamos e agradecemos à Fábula a chegada desta fascinante homenagem àqueles que, solitariamente, durante anos, dedicaram a vida a guardar e a assegurar o funcionamento das "casas de luz".


No rochedo mais alto de uma minúscula ilha nos confins do mundo, ergue-se um farol. Foi construído para durar para sempre, alumiando o mar com a sua luz, guiando os navios que passam.

A história apresenta-se sob a forma de relato da vida do faroleiro. Uma vida solitária que se compartimentava em pequenas e rígidas rotinas no dia a dia. Cuidar da luz, limpar as lentes, acrescentar petróleo, aparar as pontas queimadas dos pavios, pescar, pôr a mesa,  escrever o "diário  de bordo", escutar o vento, observar o horizonte, escrever para a mulher...
Rotinas solitárias, por vezes só quebradas por tragédias, tempestades, dias revoltosos. 


Em Olá Farol, a chegada da mulher e o nascimento da filha amenizam um pouco a solidão, tornando a família numa estrutura de suporte  para enfrentar o isolamento. Enquanto o texto se apresenta como um diário, através das ilustrações, Blackall transmite-nos  os pormenores dos dias, a dureza da noite, o decurso do tempo, as estações do ano... os acontecimentos, as emoções.  Os momentos mais íntimos ou nostálgicos surgem em forma de círculo, enfatizando o lado solitário dessas vivências. 


Num formato vertical, como o próprio farol, o verde e o azul do mar predominam na delicadeza das aquarelas que retratam magistralmente o interior desta morada e o confinamento da vida dentro dela.  Quem já teve oportunidade de visitar alguns destes faróis, que hoje apresentam a possibilidade de ali pernoitar, sabe o quanto impressiona imaginar a vida desses guardiões do mar. E o quanto este magnífico livro se aproxima dessa realidade de outrora, tão longínqua para os leitores.


Por último, um merecido elogio à edição da Fábula, que optou por uma capa com um toque macio e suave que nos aumenta a vontade de entrar mar dentro, visitar o farol, conhecer o faroleiro... Vão lá!

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

ENDIREITA-TE



Há cerca de dois anos escrevíamos aqui sobre Um Dia de Neve, o livro com que Ezra Jack Keats surpreendeu a América em 1962. Tratava-se do primeiro álbum ilustrado na história da literatura infanto-juvenil com um protagonista afro-americano. O tempo encarregou-se de lhe conferir o estatuto de clássico e, apesar da delonga, ficámos gratos à Orfeu Negro por o ter feito chegar a Portugal. Mais de meio século volvido, continuamos a interrogar-nos porque são tão poucos os heróis, os príncipes e as princesas de outras raças? Porque não há mais livros que espelhem a diversidade cultural?


São muitas as razões para aplaudirmos a chegada deste magnífico Endireita-te, um livro de Rémi Courgeon, autor francês que faz a sua estreia entre nós pela mão da editora Orfeu Negro.  Vivida em Djougou, esta é uma história sobre as  mulheres deste lugar do mundo e a força que elas carregam dentro de si. Mas também sobre costumes e tradições, sobre coragem e determinação. Porque em Djougou, para que uma menina cresça, põem-lhe coisas na cabeça. Coisas que ela não pode deixar cair e que tem de erguer para o céu.


O peso da carga é proporcional ao crescimento. Quem o conta é Adjoa, a protagonista cuja vida atravessa as páginas do livro. Conhecemo-la menina, vemo-la tornar-se rapariga e mulher. Não sabe quantas vezes na vida ouviu da mãe, da avó, das tias, a frase: 
- Adjoa, endireita-te! 
Quantas vezes na vida as meninas, as raparigas e as mulheres da sua terra escutam essa canção. A única certeza é que nunca partem de cabeça vazia. Adjoa conta que na cabeça de uma mulher não há lugar para um bebé, mas as mulheres com quem nos podemos cruzar levam muitas vezes um bebé na barriga, um pequeno às costas e uma vida inteira na cabeça. 


Mas Adjoa sabe o que transportou. Cabaças, baldes, jerricãs, milho, desgostos, gasolina, segredos difíceis de guardar, uma prótese, lenha, invejazinhas bicudas, café, bananas, sonhos, desilusões, arroz, esperanças, especiarias, amores secretos... A lista é longa. Muito longa. O transporte faz-se sempre da mesma maneira. De dentes cerrados e cabeça erguida. 
O destino preparou-lhe o que poderia ter sido uma gigantesca carga de trabalhos. Mas Adjoa, com toda a sensibilidade e sabedoria que o peso das coisas e dos sentimentos que carregou lhe foi concedendo, soube transformá-la numa vida repleta de amor. 
Não é só a vida de Adjoa que atravessa todo o livro. São, também,  a poesia e a beleza de que se reveste este sublime retrato da mulher africana. Courgeon construiu-o a partir das suas viagens a esta parte do mundo.  Pintou-o com as cores fortes e quentes dessas paragens. E conferiu-lhe um formato longo para que nele coubessem Adjoa e todas as outras mulheres endireitando-se com as vidas na cabeça.


Em 2013, encantámo-nos com  Pieds Nus, o primeiro livro que adquirimos do autor. Uma abordagem bem original e divertida sobre liberdade. A pergunta da contracapa seduziu-nos. Teremos mesmo necessidade de usar sapatos para avançar na vida? Para quem gosta de calcorrear os dias descalça, a chegada de Courgeon será sempre motivo de celebração.