terça-feira, 27 de setembro de 2022

A Avó Lá de Cima e A Avó Lá de Baixo



Há cerca de dois anos, festejámos aqui a chegada de Tomie DePaola e do seu Oliver Button é uma Menina.  Agradecemos à Kalandraka, editora responsável por nos apresentar em português alguns nomes consagrados do universo da literatura infantil. Mas estávamos longe de imaginar que DePaola, autor de uma vasta e acarinhada obra com mais de  260 livros, nos deixaria quatro dias depois. 


Os livros  de DePaola são atravessados pela aparente simplicidade e pela beleza que caracterizam as histórias de vida.  As memórias que guarda do seu tempo de menino são partilhadas com os leitores de forma genuína e sem filtros. O autor não parece temer as imperfeições ou as coisas menos boas que possam caracterizar as personagens e as situações que descreve. Só isso bastará para que todo o leitor, independentemente da idade, se identifique com o que lhe é contado. A Avó Lá de Cima e A Avó Lá de Baixo, publicada no início dos anos 70, foi a primeira incursão do autor pela infância e resulta numa comovente celebração do amor que o unia a uma avó e a uma bisavó.
Escrito há quase cinquenta anos, este é um clássico que continua a emocionar todos os que o lêem. 



A avó lá de cima tem 94 anos, já não tem qualquer mobilidade e está confinada à cama. É a bisavó de Tommy. A avó lá de baixo continua a ser a dona da casa, sobretudo da cozinha e do magnífico fogão a lenha onde prepara as refeições para todos. O rapaz, o irmão e os pais são presença regular em casa dos avós, sendo o domingo o dia dedicado à reunião familiar.

Assim que chega, o pequeno sobe as escadas de um só fôlego,  para usufruir da companhia daquela que, do alto dos seus 4 anos, considera a sua melhor amiga. 
Sucede-se todo um ritual alicerçado na ternura e na cumplicidade que aqueles dois seres, com 94 e 4 anos,  alimentam um pelo outro.
Partilham os rebuçados de menta da bisavó, o coelho de peluche do pequeno, a hora da sesta, as cadeiras de espaldar onde Tommy quer ser amarrado numa sincera e pura demonstração de solidariedade para com a avó lá de cima...
Tommy ainda não sabe, mas muitos destes momentos vão acompanhá-lo toda a vida. 
Exemplo disso é o tempo que a avó lá de baixo dedica a pentear a avó lá de cima e se penteia a si própria, exibindo a longa trança de cabelos cor de prata que lhe adorna a cabeça. O pequeno é um observador atento e absorve cada gesto. O carinho que sente pelas duas avós é tão intenso quanto chocante se revela a afirmação do seu irmão mais velho de que a bisavó parece uma bruxa. 
Não parece nada! Ela é linda! - afirma Tommy peremptoriamente.


Abordar a temática da morte junto dos mais novos nunca é fácil. Mas, de quando em vez, a vida evidencia-a necessária. Quando a mãe de Tommy lhe dá a notícia da morte da bisavó, o rapazito de 4 anos não sabe o que é morrer. Morrer quer dizer que a avó lá de cima nunca mais estará aqui connosco. Só estará na tua memória.
Tommy necessita de se certificar. A imagem do pequeno rapazito olhando, incrédulo,  para a antiga cama vazia, com almofadas que mais parecem nuvens, transporta o leitor para a atmosfera nostálgica do quarto onde só se ouve o silêncio deixado pela sua melhor amiga. DePaola faz-nos habitar uma história simultaneamente  intensa e serena sobre a velhice, o decurso do tempo, a vida e a morte. Mas também sobre o amor, os laços familiares, a pureza da infância. 
O leitor não tem como não sentir a comoção que invade o coração do pequeno. Inconsolável, só mesmo o avistar de uma estrela cadente, da janela do seu quarto, lhe dá o conforto necessário e a compreensão de que aqueles que amamos nos acompanharão para sempre. Um dia, a avó lá de baixo passou a ser a avó lá de cima. E, quando o leitor vê o rapaz já feito homem, no seu quarto, observando outra estrela cadente, sabe que mais um ciclo de vida chegou ao fim. 
Para o leitor, fica a certeza de que ambas as avós se perpetuaram nas doces memórias de Tommy. Não só porque a fotografia que tirou com elas ainda menino se mantém no seu quarto, mas também porque o homem em que se tornou sentiu vontade de partilhar a sua história com todos nós. 

Uma história que muitos conhecem ilustrada apenas a três cores: preto, magenta e amarelo, por ser essa a versão original. Vinte e cinco anos volvidos, DePaola voltou a pintá-la como se de um novo livro se tratasse. De acordo com as suas palavras, as cores foram suavizadas de forma a manter a atmosfera nostálgica, mas a experiência foi tão emocional quanto tinha sido na primeira vez. Acreditamos.

Ainda que lamentando os muitos anos de atraso com que chega e as várias gerações que cresceram sem conhecer os seus livros, hoje voltamos a celebrar e a agradecer a edição em português  de um livro que nos acompanha desde sempre. Porque guardamos memórias de alguns momentos únicos vivenciados a partir dos livros do autor de "Strega Nona", será sempre um privilégio dizer: 
- Seja bem-vindo Mr. DePaola!