segunda-feira, 29 de março de 2021

Ser Pequeno na Cidade























Intenso, comovente, ambíguo e maravilhosamente desafiador. É assim Ser Pequeno na Cidade, do canadiano Sydney Smith, trazido para Portugal pela mão da Fábula. É a estreia de Smith como autor de texto e ilustração.  Mas, enquanto ilustrador, o seu trabalho  sempre deslumbrou quem o segue de perto. Os prémios recolhidos falam por si. Por cá, conhecemos  Flores Mágicas, editado pela Livros Horizonte. Fãs incondicionais, há muito que aguardávamos festejar uma nova visita. 

Ser Pequeno na Cidade é uma narrativa quase cinematográfica que nos prende logo na capa. O olhar enigmático  de uma criança para lá do vidro de uma janela de autocarro, os prédios em fundo,  as luzes vermelhas dos faróis dos carros, os pequenos flocos de neve e a aparente obviedade do  título chamam o leitor para o livro mesmo antes de o abrir. O estilo de Smith é indissociável do seu gosto pelas vinhetas, pelos quadros em que distende sequencialmente as suas histórias. Aqui e além, as ilustrações surgem-nos como manchas, relembrando-nos algumas obras impressionistas, sem nunca deixar de nos fornecer um retrato imponente e bem real da cidade. Os candeeiros, as passadeiras, os letreiros, os cabos eléctricos, as sombras... são múltiplos e desconcertantes os detalhes que o autor nos oferece. Um inicio silencioso e nostálgico, através de uma dupla página de observação da vida na cidade, deixa antever algum mistério. A acção parece começar com o gesto da criança ao levantar-se para sinalizar que sairá na paragem seguinte. 

                                                                                                                                                                        




















A saída do autocarro é feita para uma dupla página onde a cidade se agiganta. Pessoas, prédios de grandes dimensões, carros, gruas,  semáforos... compõem o cenário , algo intimidatório, onde chega a pequena criança carregando a sua mochila. Pela primeira vez, surgem algumas palavras. Ao leitor, soam reconfortantes: "Eu sei como é ser pequeno na cidade". Percorremos o caminho com a criança. Não lhe conhecemos nome, não sabemos se é rapaz ou rapariga. Devidamente equipada para o dia de inverno que enfrenta, apreendemos-lhe apenas a pequena estatura e o olhar profundo. Como leitores, a curiosidade é grande, as interrogações são muitas. De uma forma ou de outra, já todos vivenciamos esta experiência e sabemos como pode ser difícil ser pequeno na cidade. A solidão, o medo e o perigo parecem continuar a atravessar  o livro.  
























A neve  aumenta de intensidade, o entardecer avizinha-se. Só a voz o continua a acompanhar, redobrando agora os conselhos. Os becos podem ser bons atalhos. Mas não vás por este. É demasiado escuro. Neste quintal, três cães grandes... se eu fosse a ti... não passava nem perto. Há  muitos sítios onde te podes esconder

A esta altura, é legítimo ao leitor pensar que esta foi a forma encontrada pelo autor para que a criança não enfrentasse tudo sozinha, para que a travessia não fosse tão dura. Há um narrador que a acompanha, que a aconselha, que lhe diz por onde deve ou não deve ir, com quem pode e com quem não deve falar, que lhe indica os lugares mais seguros. 
























Apesar do barulho da cidade, um intenso silêncio parece envolver a criança e os leitores numa mesma teia. Paramos muitas vezes. Vislumbramos os perigos. Sentimo-nos igualmente inseguros. Tememos por aquela criança. A meio, paramos, confusos. Por que razão uma criança pedirá um peixe ou se esconderá no cimo de uma nogueira? Por que razão dormirá uma soneca junto ao vapor quente de uma lavandaria ou se aninhará no colo de alguém? Mas não queremos perder qualquer passo, qualquer gesto. Depois, chega o momento. Há uma espécie de magia na viragem da história. Não na história de Smith, mas na historia que o leitor foi construindo na sua cabeça. É aqui que percebemos que os conselhos não são para a criança, que não há o tal narrador que procurávamos desde o começo, que provavelmente vamos ter de percorrer este caminho uma e outra vez! Porque muita coisa nos terá escapado. Porque não procurámos o suficiente, não estávamos avisados. Este não é só um caminho feito de medos e inseguranças. É também um caminho feito de perda. Mas isso só Smith sabia. O que ele fez foi desafiar os leitores para um jogo de ambiguidade e subtileza. Nós aceitámos. Agora é a vossa vez!
























Com uma viragem tão inesperada quanto surpreendente e um final em aberto, este é um livro brilhantemente construído. Com alguns apontamentos a lembrar uma das confessas inspirações do autor, Edward Gorey. Mas também aqui e além, invocando esse outro grande livro Um Dia de Neve, do autor que dá o nome ao prémio com que foi galardoado, Ezra Jack Keats.  Pode não nevar nas nossas cidades, mas as ruas são igualmente feitas de perigos e incertezas.  Esta é uma caminhada que pequenos e grandes não podem perder.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Discórdia.


 























Discórdia, da autoria de Nani Brunini, é o nono livro da colecção Imagens que Contam, editada pela Pato Lógico. A  colecção nasceu, há cerca de oito anos,  como um espaço de liberdade criativa para artistas visuais, em que cada convidado é desafiado a imaginar uma narrativa contada exclusivamente através de imagens.











Brunini aceitou o desafio e o resultado é uma magnífica narrativa visual à volta de um tema que nos envolve a todos. Brasileira de nascimento, tendo vivido em vários lugares como São Francisco e Londres, a autora terá vivenciado de perto as divergências de opinião de amigos e familiares acerca de acontecimentos como a chegada de Trump e Bolsonaro ao poder ou o Brexit. Na vida, muitas vezes, as diferentes posições são elevadas a um extremo que conduzem ao corte de relações e a zangas intermináveis. Foi esse o ponto de partida para esta discórdia.























 

O que começa por ser uma opinião diferente de duas pessoas, vai-se transformando numa acesa celeuma. A cada lado das duplas páginas vão chegando novos partidários que contribuem para a gigantesca polémica. O pequeno formato das personagens dispostas no vazio branco das páginas, acentua ainda mais o enorme ruído que se vai gerando. Sem necessidade de palavras, ele chega ao leitor através da nuvem que se foi instalando, pintada com as duas cores da controvérsia. A cada virar de página, as posições surgem mais extremadas, sugerindo que chegámos a um ponto em que os argumentos da cada um já não são audíveis. Querem saber quem ganha e quem perde? Se há vencedores e vencidos? Abram o livro e ouçam o barulho ensurdecedor que por lá se faz.
 

























Não deixem de o fazer com as crianças porque este é um livro para todas as idades. Os temas que inspiraram a autora ( podem ver aqui a entrevista que deu ao blogue Letra Pequena) podem ser do mundo dos adultos, mas assistir a esta discórdia fará bem a leitores de todas as idades e tamanhos. Afinal, como diz o Pato, Discórdia é um livro para quem está cansado de gritaria. E não estamos todos?

quinta-feira, 18 de março de 2021

Quando Eric Carle e Anthony Browne nos visitam ... É uma festa!















Há muito tempo que queríamos receber esta mensagem secreta em português! A Mensagem Secreta de Aniversário de Eric Carle, agora editada pela Kalandraka, é um livro que nos acompanha há muitos anos e que faz as delícias dos mais pequenos. Já perdemos o conto às vezes que pomos os mais pequenos a ajudar o Tim a decifrar a misteriosa mensagem que lhe foi deixada debaixo da almofada na véspera do seu aniversário. E, claro, a encontrar o presente a que ela conduz.












Carle oferece-nos uma aventura partilhada entre o rapaz da história e os pequenos leitores que, não só têm de decifrar as enigmáticas pistas como percorrer todo o caminho envolto em mistério. A viagem faz-se de noite, por entre estrelas, morcegos e grutas, mas os possíveis sobressaltos são esquecidos assim que Tim e a pequenada encontram o presente de aniversário.

















Cartonado e de pequeno formato como pedem as mãos dos seus destinatários, o livro reserva-lhes, ainda, a surpresa de as páginas se apresentarem recortadas com a forma do objecto que representam. Num livro que teve a sua primeira aparição nos anos 70, as formas geométricas e a orientação espacial são, como sempre, introduzidas com grande sabedoria pelo mestre da cor. Inspirem-se e deixem por aí algumas mensagens para a criançada decifrar pela casa toda.









































Não é uma estreia, mas a reedição de um dos livros de Anthony Browne de que mais gostamos merece que o festejemos. Pela Floresta é uma das viagens mais deliciosas e incríveis que podemos fazer floresta dentro. Ainda que a capa e as primeiras páginas nos revelem que o protagonista da história é um rapaz, quase não necessitamos abrir o livro para saber que ele nos remete para o universo da Capuchinho Vermelho. 




O magnífico inicio de história parece traduzir-se num presságio de que algo está para acontecer. O pai não está em casa e essa separação não é do agrado do rapaz. O que se segue é-nos familiar. A a avó está doente e a mãe pede que lhe leve um bolo. Para chegar a casa da avó há dois caminhos possíveis. O mais longo, que demora séculos, e o mais curto, pelo meio da floresta. A mãe, obviamente, disse-lhe para ir pelo caminho mais longo e seguro. Não que o rapaz fosse desobediente, mas como queria estar em casa quando o pai chegasse,  aventurou-se pela floresta. 

























Browne conduz-nos por uma floresta repleta de mistério, plena de detalhes e metáforas visuais. O lobo andará, certamente, por lá, mas quem o rapaz dos sapatos vermelhos encontra, a cada virar de página, são personagens bem nossas conhecidas de outros contos. O preto e branco eleitos pelo autor adensam o mistério, a inquietude e o medo do rapaz que acaba por chegar a casa da avó não só com os simbólicos sapatos vermelhos com que saiu de casa, mas também com um casaco de capuchinho vermelho com que se cruzou no caminho. Curiosos? 





Para os que ainda não conhecem a história,  esta é a altura em que devem agarrar nas crianças, abrir o livro, percorrer a floresta, enfrentar os medos e corajosamente entrar em casa da avó...


terça-feira, 9 de março de 2021

O Destino de Fausto. Uma Fábula Ilustrada



Não será por acaso que se chama Fausto. O mito vem-nos à memória, Fausto vendeu a alma ao diabo. Relembramos Gothe e o indissociável Drº Fausto. Mas este é outro. É o Fausto a quem Oliver Jeffers traçou o destino. Uma fábula ilustrada sobre um pequeno ditador que almeja ser dono do mundo. Com o toque de genialidade que todos reconhecemos ao autor, o último livro de Jeffers chega, mais uma vez, pela mão da Orfeu Negro.







































Tratando-se de uma fábula, o leitor cedo intui que o destino de Fausto terá algo de trágico. Mas nem por isso deixamos de nos sentir inclinados a torcer pela má sorte do protagonista. Para isso muito contribui a ambição desmedida  que este vai exibindo em crescendo desde que abrimos a primeira página do livro.

Como na vida, a ordem não é indiferente e a história começa com o pequeno homem, a quem não falta a gravata e a barriga proeminente, a subjugar os "aparentemente" mais fracos. Uma pequena e delicada flor, uma pacata e doce ovelha,  uma árvore que acaba por se vergar perante o reiterado anúncio: 

- Tu és minha!







































Já dono da flor, da ovelha e da árvore, Fausto continua insaciável na sua ânsia de poder. Cada vez mais confiante e determinado, vai reclamando para si tudo o que se atravessava no seu caminho. Um campo, uma floresta, um lago. Ninguém fica indiferente à ira demonstrada pela criatura sempre que lhe oferecem resistência, como sucede com a montanha. Há sempre os que resistem! Ainda que seja por pouco tempo.

A ganância de Fausto vai crescendo na mesma proporção do desejo do leitor de conhecer o inevitável fim que Jeffers lhe reservou. Não sem que antes nos tenhamos interrogado se a flor e a ovelha de Jeffers terão algo a ver com as do Principezinho...













Quando vemos o homem fazer-se ao mar, adivinhamos, desde logo, que a coisa tem tudo para não correr bem.  A vontade de saber o que nos reservam as páginas seguintes é ainda maior.


- Tu és meu, mar! 





























O diálogo entre Fausto e o mar tem tanto de previsível como de arrebatador. Sábio, o mar começa por optar pelo silêncio. Mas a prepotência nunca se deu bem com o silêncio ou a indiferença e isso só fez aumentar a raiva de Fausto. O seu interlocutor reage com a calma própria dos que sabem de que lado está a razão. 

- Mas tu nem gostas de mim - disse o mar. 

Fausto afirmava que estava enganado, que gostava muito dele. 

Como nós, o mar sabia que Fausto estava a mentir e desferiu a pergunta fatal:

- Como podes gostar de mim, se não me compreendes?

Incapaz de controlar a sua raiva, Fausto não via a hora de mostrar quem mandava ali.

- Se queres bater o pé, então vem mostrar-me como se faz, para que eu perceba. E foi assim que Fausto acabou. A bater o pé ao mar.  E, como não sabia nadar...
























Jeffers recorreu inteligentemente às páginas em branco para transmitir ao leitor o isolamento de Fausto face ao mundo. À sua volta, tudo é vazio  e frio. Em contrapartida, o contraste com as cores fortes que utiliza para pintar o mar reforça ainda mais as suas beleza e grandeza. E não  deixa margem para dúvidas quanto ao posicionamento do leitor nesta fábula.

Sim, ficamos aliviados! Até felizes, com a justeza do destino de Fausto. Com tanto ditador no mundo, não precisávamos de mais um. 

Jeffers sabe disso, e em jeito de moral, brinda-nos com algumas conclusões tão óbvias quanto sublimes. 

O mar ficou triste por Fausto, mas continuou a ser o mar

A montanha também voltou à sua vida normal. 

O lago, a floresta, o campo a árvore, a ovelha e a flor continuaram a ser como eram. 

Porque o destino de Fausto não era importante para eles.





Oliver Jeffers tem, há muito, um lugar de destaque na literatura infantil. As suas histórias parecem trazer, a priori, um selo de qualidade e conquistam leitores de todas as idades. Os  últimos livros parecem querer acrescentar algo mais, sempre em jeito de reflexão sobre o mundo onde vivemos hoje. Fausto é bem exemplo disso. 

E o texto do escritor Kurt Vonnegut que encontramos no final do livro, também. É o relato de uma conversa com outro escritor, Joseph Heller, que terá tido lugar numa festa de um milionário em que estiveram juntos. Perante a riqueza evidente do milionário, Heller terá dito: 

- " Eu tenho uma coisa que ele nunca terá."

- "E que raio de coisa é essa, Joe?", perguntou Vonnegut.

- "A noção de que tenho o suficiente".

Ora aí está algo que Fausto nunca poderia ter compreendido. Tal como não compreendeu o mar.