Não será por acaso que se chama Fausto. O mito vem-nos à memória, Fausto vendeu a alma ao diabo. Relembramos Gothe e o indissociável Drº Fausto. Mas este é outro. É o Fausto a quem Oliver Jeffers traçou o destino. Uma fábula ilustrada sobre um pequeno ditador que almeja ser dono do mundo. Com o toque de genialidade que todos reconhecemos ao autor, o último livro de Jeffers chega, mais uma vez, pela mão da Orfeu Negro.
Tratando-se de uma fábula, o leitor cedo intui que o destino de Fausto terá algo de trágico. Mas nem por isso deixamos de nos sentir inclinados a torcer pela má sorte do protagonista. Para isso muito contribui a ambição desmedida que este vai exibindo em crescendo desde que abrimos a primeira página do livro.
Como na vida, a ordem não é indiferente e a história começa com o pequeno homem, a quem não falta a gravata e a barriga proeminente, a subjugar os "aparentemente" mais fracos. Uma pequena e delicada flor, uma pacata e doce ovelha, uma árvore que acaba por se vergar perante o reiterado anúncio:
- Tu és minha!
Já dono da flor, da ovelha e da árvore, Fausto continua insaciável na sua ânsia de poder. Cada vez mais confiante e determinado, vai reclamando para si tudo o que se atravessava no seu caminho. Um campo, uma floresta, um lago. Ninguém fica indiferente à ira demonstrada pela criatura sempre que lhe oferecem resistência, como sucede com a montanha. Há sempre os que resistem! Ainda que seja por pouco tempo.
A ganância de Fausto vai crescendo na mesma proporção do desejo do leitor de conhecer o inevitável fim que Jeffers lhe reservou. Não sem que antes nos tenhamos interrogado se a flor e a ovelha de Jeffers terão algo a ver com as do Principezinho...
Quando vemos o homem fazer-se ao mar, adivinhamos, desde logo, que a coisa tem tudo para não correr bem. A vontade de saber o que nos reservam as páginas seguintes é ainda maior.
- Tu és meu, mar!
O diálogo entre Fausto e o mar tem tanto de previsível como de arrebatador. Sábio, o mar começa por optar pelo silêncio. Mas a prepotência nunca se deu bem com o silêncio ou a indiferença e isso só fez aumentar a raiva de Fausto. O seu interlocutor reage com a calma própria dos que sabem de que lado está a razão.
- Mas tu nem gostas de mim - disse o mar.
Fausto afirmava que estava enganado, que gostava muito dele.
Como nós, o mar sabia que Fausto estava a mentir e desferiu a pergunta fatal:
- Como podes gostar de mim, se não me compreendes?
Incapaz de controlar a sua raiva, Fausto não via a hora de mostrar quem mandava ali.
- Se queres bater o pé, então vem mostrar-me como se faz, para que eu perceba. E foi assim que Fausto acabou. A bater o pé ao mar. E, como não sabia nadar...
Jeffers recorreu inteligentemente às páginas em branco para transmitir ao leitor o isolamento de Fausto face ao mundo. À sua volta, tudo é vazio e frio. Em contrapartida, o contraste com as cores fortes que utiliza para pintar o mar reforça ainda mais as suas beleza e grandeza. E não deixa margem para dúvidas quanto ao posicionamento do leitor nesta fábula.
Sim, ficamos aliviados! Até felizes, com a justeza do destino de Fausto. Com tanto ditador no mundo, não precisávamos de mais um.
Jeffers sabe disso, e em jeito de moral, brinda-nos com algumas conclusões tão óbvias quanto sublimes.
O mar ficou triste por Fausto, mas continuou a ser o mar.
A montanha também voltou à sua vida normal.
O lago, a floresta, o campo a árvore, a ovelha e a flor continuaram a ser como eram.
Porque o destino de Fausto não era importante para eles.
Oliver Jeffers tem, há muito, um lugar de destaque na literatura infantil. As suas histórias parecem trazer, a priori, um selo de qualidade e conquistam leitores de todas as idades. Os últimos livros parecem querer acrescentar algo mais, sempre em jeito de reflexão sobre o mundo onde vivemos hoje. Fausto é bem exemplo disso.
E o texto do escritor Kurt Vonnegut que encontramos no final do livro, também. É o relato de uma conversa com outro escritor, Joseph Heller, que terá tido lugar numa festa de um milionário em que estiveram juntos. Perante a riqueza evidente do milionário, Heller terá dito:
- " Eu tenho uma coisa que ele nunca terá."
- "E que raio de coisa é essa, Joe?", perguntou Vonnegut.
- "A noção de que tenho o suficiente".
Ora aí está algo que Fausto nunca poderia ter compreendido. Tal como não compreendeu o mar.
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