Espelho meu, espelho meu... Não, esta não é uma história com madrastas e maçãs envenenadas. E talvez seja uma boa oportunidade para explicar às crianças que a vaidade não tem género. Narciso, a história que vem lá de trás, da mitologia grega, é a prova disso. Antes de ser flor, Narciso era um belo e deslumbrante jovem que um dia se apaixonou por si próprio ao ver a sua imagem espelhada na água do lago. Muitas foram as ninfas que suspiraram pelo seu amor, mas o coração do rapaz, por maldição ou não, só tinha um dono. Ele próprio. Tal como a flor, o narcisismo parece ter florescido, nunca mais abandonando a humanidade.
Vem tudo isto a propósito de um certo Senhor Narciso que se passeia pelas páginas de Matilde, o livro escrito por Luís Correia Carmelo e ilustrado por Mariachiara di Giorgio, com chancela da editora bruaá. A nossa personagem não terá herdado só o nome, já que, à semelhança do outro Narciso, nada na sua aparência era deixado ao acaso e não havia espelho que lhe escapasse. Imaginem, pois, a felicidade que sentiu quando, certo dia, se contemplou, maravilhado, no enorme vidro da Boutique Esmeralda, que abrira mesmo por baixo da sua casa. Ali sim, podia ver-se de alto a baixo. Desde os sapatos bem engraxados ao chapéu impecável, passando pelo fato engomado religiosamente e, claro, bengala com cabo de marfim. E como gostava do que via!
Ainda que não lhe interessasse o que estava do lado de lá , já que até se tratava de uma boutique de senhoras, parar na enorme montra e admirar a sua imagem reflectida, tornou-se um ritual. A que se seguia um inevitável sorriso, já que o que via o deixava sempre encantado. A ele e à menina Matilde que, no interior da loja, sentada atrás do balcão, passou a dar menos atenção às palavras cruzadas e mais ao seu elegante vizinho de cima.
O caso não era para menos. Todos os dias, se sentia fixamente olhada através do vidro e ainda obtinha aquele sorriso! A menina Matilde corava e derretia-se toda. Passou a aguardar aquele momento com o coração agitado.
Mas o amor também tira o sono. Alguns dias depois, Matilde ficou perturbada quando viu o vizinho pentear-se enquanto olhava para ela... não dormiu nessa noite. Mas no dia seguinte, quando o vizinho lhe sorriu, tirou o chapéu e ainda lhe mandou um beijinho, a menina Matilde focou nas nuvens e, desta vez, a noite foi para sonhar. O pior estava para vir, no dia em que Matilde pediu a uma amiga que ficasse na loja enquanto ia aos correios e, no regresso, se deparou com o vizinho "a mandar o beijinho" lá para dentro. Matilde não terá percebido que os beijinhos do Senhor Narciso eram para ele próprio mas, uma coisa é certa, a sua história tem um final bem diferente do da ninfa Eco quando se viu rejeitada pelo jovem Narciso. Sinais do tempo.
As ilustrações de Mariachiara di Giorgio são um deleite para os olhos de pequenos e grandes leitores. Já nos tínhamos apaixonado pelo trabalho da ilustradora quando o seu Profession Crocodile nos chegou às mãos (podem espreitar aqui). Parabéns à Bruaá por este feliz casamento!
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