Richard Zimler escreveu. Júlio Pomar ilustrou. O resultado é um livro de extrema delicadeza. Apaixonante pelo que conta, irresistível pela proximidade que nos incute com as personagens que vivem nas suas páginas.
Bullying é uma palavra de origem inglesa que, infelizmente, todos conhecemos e muitos vivenciamos. Sem que alguma vez apareça escrita ao longo do livro, ela está presente na cabeça do leitor desde que a história começa a ser contada por Violeta, a gata da casa.
O começo é precioso...
Quase toda a gente disse que não estava bem que o cão tivesse derrubado o rapaz e o tivesse mordido, mesmo que ele o merecesse. Se calhar tinham razão. Mas eu não podia culpar o Adão. Se fosse tão grande e forte como ele, talvez tivesse feito bem pior! Mas as minhas emoções estão a conduzir-me para o fim da história antes de contar o começo...
Fugindo à tentação, Violeta conta-nos que mora em Lisboa, numa pequena casa branca, com cortinas amarelas nas janelas, perto do jardim da Estrela, e apresenta-nos a família. Partilha o quarto com Adão, um border collie, com focinho e corpo metade branco, metade preto, que tem por hábito morder a chuva.
Sempre que alguém faz troça do Adão por morder a chuva, Sílvio, o pai (que não é biológico, esclarece Violeta) responde com orgulho que o cão tem uma natureza poética. Violeta não sabe muito bem o que isso quer dizer, mas vai logo adiantando que, se significar que Adão não é bom da cabeça, concorda plenamente! Mas, como acha que os outros devem fazer aquilo que os deixa felizes, se o irmão mais velho gosta de comer gotas da chuva, por ela tudo bem.
Da família fazem ainda parte a mãe Margarida, Pi, a irmã adolescente e o Zé, que também é irmão deles, mas não é um cão. É um rapaz de 11 anos, que cuida dela e de Adão. A relação de grande cumplicidade entre os três intui-se. Zé leva-os a passear pelas ruas de Campo de Ourique, joga futebol com eles e, aos sábados de manhã, leva-os à pastelaria da esquina, compra-lhes biscoitos e deixa-os comê-los às escondidas, sem os pais saberem.
Sem qualquer esforço, cedo se adivinha o importante papel que o elemento mais novo da família assume na vida dos dois. Violeta quer que o leitor o conheça bem e presenteia-nos com uma lista de algumas coisas que o Zé adora:
- Devorar biscoitos de aveia.
- Plantar flores no nosso jardim com o pai.
- Tocar flauta.
- Folhear as brochuras das viagens que a mãe leva para casa.
- Jogar como guarda-redes na sua equipa de futebol.
- Desenhar borboletas com cores brilhantes.
Na verdade, o Zé gosta de qualquer coisa que tenha asas. Às vezes sonha que é um pássaro. E às vezes corre pelo jardim com os braços no ar - uma águia a sobrevoar Portugal.
Um dia, o Zé deixou de ter vontade de fazer qualquer uma destas coisas. O rapaz alegre que conheciam cedeu lugar a um outro bem diferente, capaz de gestos e atitudes irreconhecíveis. Os primeiros sinais pareciam ser perceptíveis apenas por Violeta e Adão, já que o Zé teimava em ocultá-los. Preocupados e tristes, escapavam-lhes as razões da abrupta mudança do rapaz.
A vida lá em casa mudou. Começou a ficar estranha. Os pais estavam preocupados e mais atentos do que nunca, mas o Zé teimava em esconder as marcas do que o atormentava. Como se não bastasse, os 12 anos de Adão pareciam começar a pesar-lhe. Deixou de subir as escadas. Os dias estavam difíceis.
A solução para os problemas de Adão não chegou do veterinário que o tinha examinado, mas sim do acaso de os óculos da Pi lhe terem ido parar ao focinho. Com a visão recuperada e disposto a tudo fazer pelo irmão Zé, Adão foi determinante na solução do problema vivido pelo pequeno.
Contada com elevada subtileza, a história aprisiona o leitor pela forma como aborda um tema tão difícil, ao mesmo tempo que revela a intensidade e a riqueza do perfil psicológico das personagens que habitam a pequena casa branca.
Recentemente editado pela Porto Editora, O cão que mordeu a chuva é um livro belo, tanto nas palavras eleitas por Zimler como nas ilustrações de Mestre Pomar. O formato grande e o design, com a assinatura de Henrique Cayatte, contribuem igualmente para que o leitor sinta ter na mão um livro único. Para ler em família, para reflectir sobre muita e tanta coisa. Acima de tudo, para ler aos meninos que não têm a sorte de ter um qualquer Adão. Com ou sem óculos.