quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Viva o Livro!


É uma das características mais apaixonantes da literatura infantil: o livro reinventa-se todos os dias. Vir ao mundo, de Emma Giuliani, editado pela Edicare, é um bom exemplo disso.


Poético e belo. Delicado e resistente. Pela voz das flores, o ciclo da vida vai acontecendo a cada folha que abrimos em forma de harmónio. 


Num fundo preto e branco, as flores encontram-se ocultas graças à técnica das formas pop-up. Cabe-nos a nós tocar-lhes, abri-las, descobrir-lhes as cores. Ou não. Afinal, como na vida.


Vir ao mundo num vasto universo. Viver graças ao calor de um outro e retribuir. Misturar as suas cores, para uma ainda maior beleza.



Reconciliar os amigos, declarar o amor, coroar as crianças ou dizer um último adeus... As palavras são poucas mas revelam uma imensidão. Da aliança entre elas, as imagens e o próprio design do livro, surge a  revelação dos diversos estágios da vida. Lembrando-nos que, à semelhança da minúscula joaninha que atravessa todo o livro, somos seres actuantes. Ou não.


E apesar da fragilidade, existir. Um livro sobre flores, sobre pessoas, sobre a própria existência. Dos 0 aos 100, um objecto belo, delicado e tocante que sentimos como nosso.



Numa sessão de leitura com jovens de 13 e 14 anos mostrámos o livro. No final, observámos que um deles ficara para trás, que apertava o livro contra o peito e chorava. Expunha a sua fragilidade por uma perda a que resiste todos os dias. Não conseguimos imaginar um mundo sem livros. Mas por uma razão ou por outra, continua a angustiar-nos pensar em todas as crianças que não os têm e que nunca conseguirão encontrar-se neles.


Aqui, o livro reinventa-se todos os dias. E fazem-se revoluções! Os cabecilhas? Procurem por entre toda esta multidão!  Nós encontrámos alguma gente conhecida, nomeadamente, a Isabel Minhós Martins e o Bernardo Carvalho,  autores deste livro, editado pelo Planeta Tangerina.


Mas isso não constituirá propriamente uma novidade. Revolucionar talvez seja o verbo que melhor define o papel daquele Planeta no universo infantil. 


Daqui Ninguém Passa! É a história de uma revolução, mas também a revolução do próprio livro. É uma brincadeira magnífica, hilariantemente conseguida, que nos faz querer participar! 


A partir de agora vai ser assim, não percam o vosso latim. Quem o diz é o general Alcazar, um homenzinho prepotente, que se julga dono do livro e ambiciona ser o herói da história. 


Não, não é um valentão! Muito menos um corajoso! Munido de um exército de guardas, o  homem limita-se a impôr proibições. A página da direita está-lhe reservada!


Mas, como diz a Isabel, este livro é de todos e se há revoluções que se fazem com cravos,  outras há que se fazem com bolas... Certo é que a história parece reservar algumas surpresas ao dito general!


Como tudo isto acaba é algo que terão de descobrir. Nós já sabemos. Porque andámos no meio da multidão, ouvimos os desabafos de muita gente, detectámos coincidências e escolhemos os nossos heróis! Enfim, participámos na revolução. 


Talvez por isso nos falte agora tempo  para elencar todos os livros de que gostámos em 2014. Mas se nos pedissem para eleger um, diríamos... Daqui Ninguém Passa!


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Barriga da Baleia


A viagem tinha como destino a terra - onde - Nunca - Ninguém - se - aborrece. Mas o barco que o amigo Azur havia construído na praia não resiste ao temporal e  Sari acaba dentro da barriga da baleia.


Não é novidade que na barriga da baleia tudo pode acontecer. Assim, de repente, ocorre-nos, por exemplo, que foi dentro dela que Pinóquio reencontrou Gepeto...  


Aparentemente, para a protagonista desta história, a vida lá dentro também não se mostra  fácil. Para além de ter de enfrentar o escuro, ainda se depara com BICHOS que a confundem com comida e  um homem muito CHATO que espreitava pelo OLHO da baleia, contando UM A UM os peixes no fundo do mar.


O território é desconhecido e Sari tem de enfrentar um turbilhão de sensações. Mas, a esta altura da  viagem, já lhe descobrimos a veia aventureira, que faz dela uma menina determinada e VALENTE.


A mesma  que  decidira fugir de casa bem cedinho, sem que os pais, MUITO dorminhocos, dessem por ela...



Uma viagem onde a imaginação anda à solta e onde se trilham vários e diferentes caminhos.  O medo,os perigos do desconhecido, o desejo de aventura e de descoberta, a natureza e a forma  como nos relacionamos com ela, a amizade... Como na vida, nem sempre é fácil optar.

 

Azur sabe que tem de ajudar a amiga mas não sabe como voltar até à baleia. ESCAVAR um grande buraco na areia e esvaziar o mar todo lá para dentro é a solução encontrada.


O azul do mar cede lugar ao castanho da terra. Mas, sem água os peixes não conseguem RESPIRAR. SEM MAR, nem a baleia nem os peixes podem nadar.


O que farão Sari e Azur? Será que chegam mesmo à TERRA - ONDE - NUNCA - NINGUÉM - SE - ABORRECE? Descubram!


Com um vasto percurso na banda desenhada, António Jorge Gonçalves já antes assinara a ilustração de dois dos livros que marcaram 2013. Irmão Lobo, escrito por Carla Maia de Almeida e Uma Escuridão Bonita, com texto de Ondjaki, que lhe valeu o Prémio Nacional de Ilustração. Barriga da Baleia, agora editado pela Pato Lógico, marca a estreia como autor de texto e ilustração. Próximo?

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O Escuro


Foi uma das nossas escolhas 2013. Há precisamente um ano, falámos aqui sobre o livro, na versão inglesa The Dark, de  Lemony Snicket e Jon Klassen. 
Na altura, escrevemos: Klassen tem um estilo minimalista. As suas ilustrações parecem conter apenas o essencial para nos encantar e deixar incondicionalmente à espera do próximo livro. The Dark foi o último livro ilustrado por si que nos chegou às mãos. Escrito por Lemony Snicket, pseudónimo utilizado pelo popular escritor americano, Daniel Handler, o livro aborda uma velha e recorrente temática na literatura infantil: o escuro e os medos que lhe estão associados.
E acrescentámos:  Se há autores que gostaríamos de ver traduzidos entre nós,  Jon Klassen é um deles. Somos fãs do seu extraordinário trabalho.


Um ano volvido,  O Escuro já se instalou nas nossas livrarias. Mais, este é já o segundo livro de Jon Klassen editado entre nós! O primeiro foi Quero O Meu Chapéu, de que falámos aqui. Que luxo! Que alegria! Obrigado à Orfeu Negro! Duas vezes, claro.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O Primeiro País da Manhã


Escorrega = invenção rápida
Tabuada = invenção grande, cheia de números e de cruzes que não cabem na cabeça.
Estes são apenas dois dos exemplos da lista do Manel, um rapaz que adorava invenções, tendo o hábito de as agrupar e dividir.


Nós adoramos invenções e listas! Mas a do Manel é tão grande e diversificada que não caberia aqui. Nela constam, por exemplo:
Invenções às avessas
árvoresinventadas ao contrário, propositadamente para fugirem à lógica. 
Que outra razão encontram vocês para as árvores ficarem sem roupa precisamente quando o frio está a chegar? Bom, às vezes o Manel também pensa que o inventor podia ser um bocado distraído...



Invenções complicadasaquelas que parecem inventadas por mais de mil inventores e que levam o Manel a sentir um bando de formigas a atravessar-lhe a testa.  Mas isso é normal porque os grandes mistérios fazem comichão

Invenções que arrepiam:
A roupa nova no corpo, 
A água na cara, 
A mala da escola nas costas,
A manhã
... Só de se lembrar dela, o Manel ficava com a pele dos braços cheia de pontinhosUm dia havia de inventar uma invenção que acabasse com isso. 



Até porque o rapaz conhecia bem o culpado = objecto que acorda sempre milésimos de segundo antes de todas as pessoas, sem nunca se atrasar ou preferir sonhar durante mais uns minutos, e que ainda por cima se espreguiça de uma forma barulhenta, como se esticar os ossos produzisse um som muito fino e irrequieto. 



Mas de todas as invenções da lista do Manel, a nossa preferência vai para uma invenção que estava sempre longe da vista das pessoas e que só os pássaros tinham o privilégio de ver, o mundo. O rapaz acreditava que para o ver é preciso estar em cima de uma nuvem e olhar para baixo. Ou então ter um mapa. 
Mundo = invenção muito mal dividida, cheia de traços irregulares e desorganizados, uns pequenos e outros curvos, uns grandes e outros direitos. 


Apesar de toda a desigualdade, o Manel não sabia muito bem o que pensar sobre o inventor do mundo. Como não sabia qual era o seu país, tinha dúvidas sobre se ele seria um inventor solidário ou um inventor egoísta.


Já todos percebemos que, em matéria de invenções, o Manel era assim uma espécie de observador e estudioso do assunto. Não que alguma vez tivesse inventado alguma coisa. Talvez por isso,  a desigualdade do mundo deu-lhe a ideia. A de inventar o seu próprio país!


Ora, inventar um país não é fácil. Porque pensem bem, não é apenas o país. É preciso inventar: 
um nome para o país
uma bandeira para o país, (pela primeira vez, esteve quase a existir no mundo uma bandeira maior do que o próprio país), 
uma música para o país...
Depois de tudo isto, uma grande trabalheira ainda aguardava o Manel. Sim, porque para inventar um país verdadeiro como os outros que já estavam no mapa faltavam ainda umas invenções chatas e complexas que são inventadas por pessoas de gravata. Foi nessa altura que o Manel percebeu o motivo da dificuldade de inventar as leis.


Mas o Manel não é rapaz para desistir e nós garantimos que o seu país inventado é diferente de todos os outros países do mundo. Com leis diferentes. Com coisas diferentes. E com manhãs diferentes.  


Com texto de Ricardo Gonçalves Dias e ilustrações de Marta MadureiraO Primeiro País da Manhã foi distinguido com o Prémio Branquinho da Fonseca 2013. O autor diz que a ideia desta invenção lhe surgiu depois de ter lido a frase "O tempo não existe", num dos livros de Gonçalo M. Tavares. Que magnífica fonte de inspiração, acrescentamos nós!


Tecer elogios ao trabalho de Marta Madureira tornou-se já um lugar comum. As suas ilustrações reflectem, em regra, um inteligente e brilhante jogo entre desenhos, recortes, colagens, diferentes materiais... Neste caso, é através delas que imaginamos o mundo do Manel e adivinhamos  o movimento e o tempo da história. Encanta-nos a forma como parece reinventar a própria capacidade inventora. 


Voltamos ao país do Manel.  Para vos dar conta que a inauguração já teve lugar. Decorreu com pompa e circunstância, porque estas coisas dos  países exigem sempre muita solenidade. Claro está que, nesta distribuição nem sempre justa do mundo, um país novo como o do Manel ainda não é muito conhecido. Mas vale a pena explorá-lo. Até porque, o Manel está lá, à vossa espera.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Ícaro



O título e a capa dizem-nos que a história já começou, mesmo antes de abrir o livro. O nome escolhido, o posicionamento dos pássaros na montra, coarctados na sua liberdade, e o rosto enigmático do rapaz que os contempla incutem-nos uma imensa vontade de desvendar um mistério mais do que provável.




A primeira associação conduz-nos, sem demora, a Ícaro, figura da mitologia grega, que um dia, na companhia do pai e munido das asas que este havia construído, voou em busca da liberdade. Todos conhecemos o desfecho da história do mito, cuja ânsia, ou sonho, de voar mais longe e mais alto acabaria por matá-lo.



A curiosidade engorda, muito antes das primeiras páginas. Terá este Ícaro, de Federico Delicado, semelhanças com o outro? Será esta uma história com asas, rumo à liberdade? Tratar-se-à de um Ícaro moderno, um símbolo de liberdade, capaz de concretizar o seu sonho?


A história revela-se uma alegoria à liberdade. À liberdade individual, que cada um pode experimentar soltando as amarras decorrentes de censuras e julgamentos alheios. Mas também ao sonho, à capacidade de nos evadirmos, em todos os momentos, para um qualquer lugar. Basta imaginar.



Uma metáfora gigante, alimentada por muitas outras, que resulta num livro belo e enigmático. Com o enorme mérito de deixar ao leitor a liberdade de escolher e de fantasiar as leituras possíveis. De enaltecer a forma como a forte componente metafórica habita tanto na linguagem textual como na pictórica. As deslumbrantes ilustrações de Federico Delicado remetem-nos para o universo do artista americano Edward Hopper. Curiosamente, o mesmo que Maurizio Quarello invoca numa das ilustrações de O autocarro de Rosa Parks, o último livro de que falámos. São assim os livros...



Tal como os pássaros da ilustração que dá rosto à capa do livro, a história começa com o pequeno rapaz privado de liberdade a ser questionado num centro de acolhimento. Não admira, portanto, que seja um início marcado por tons cinzas e sombrios. As fortes suspeitas de que o rapaz possa ter sido abandonado pelos pais, de que seja vítima de maus tratos, manifestam-se na postura da técnica que conduz o interrogatório.
Ícaro é, antes de mais, um rapaz inteligente, conhecedor do pensamento dos adultos e resiste, enquanto pode, a revelar o paradeiro dos pais. Está certo de que não vão acreditar nele. Quando, finalmente, cede e os localiza no Polo Norte, o leitor mais crédulo ainda acalenta a esperança de que tudo se possa esclarecer. Por pouco tempo, porém. 
À pergunta da técnica: "Por acaso os teus pais são cientistas?"
o  pequeno responde sem qualquer assombro: "Não, os meus pais são pássaros!"


Este é o mote para o inicio de outra história, que decorrerá paralelamente. Contada na primeira pessoa, com cores vivas e alegres, à semelhança dos bons momentos  vividos em família. Uma família que, através da genial subtileza do autor, descobrimos pobre mas feliz. A mãe costumava fazer um estufado que o rapaz não perdia por nada deste mundo. Batatas, água, uma pitada de sal e muito mistério.



Ícaro começa por relatar o dia em que o pai soube que a transformação já tinha começado. A alegria que invadiu a casa e como foi partilhada pelos três. Puxando o fio à meada, acaba desenrolando  a história de toda a famíliaDe todos os que conseguiram, um dia, dar asas ao sonho e se transformaram em pássaros. Ou não, como é o caso da tia Gregória!
  


A esta altura do livro fizemos já outra associação. São óbvias as coincidências com a obra de Kafka, A Metamorfose. Tal como a tia Gregória, também Gregor Samsa, a personagem criada por Kafka, acordou um dia com várias patas que o impediam sequer de se arrastar. O sofá onde se aninha o pai de Ícaro, a lembrar aquele outro que Kafka descreve existir no quarto de Gregor, bem como o lençol que utilizava para se ocultar não são, obviamente, coincidências.




À semelhança do que separa  o seu Ícaro do mito grego, o autor também aqui impõe as diferenças, abrindo a porta à esperança e ao sonho. Enquanto a personagem de Kafka, é votada ao abandono e à incompreensão por parte da família, só conseguindo  libertar-se através da morte, o pai de Ícaro é entusiasticamente apoiado pela mulher e pelo filho.




Talvez porque na família de Gregor Samsa não existissem crianças. O medo, a cobardia, a vergonha e os preconceitos estabelecidos que nortearam a família kafkiana cedem lugar, no livro de Federico Delicado, ao sonho, à coragem e à aceitação da diferença. 



Sentimentos que nos invadem a nós, leitores,  quando regressamos ao centro e à realidade do momento vivido pelo pequeno Ícaro. É notável e sublime o pormenor da gravidez da técnica que com uma das mãos parece proteger o feto de todas as atrocidades que está convencida terem sido cometidas contra Ícaro.



As crianças não têm de conhecer Ícaro ou ser íntimas de Kafka. Têm de conhecer livros fantásticos! Elas, que são, por regra, voadores exímios. 
Vencedor do VII Prémio Internacional de Compostela para Álbuns IlustradosÍcaro é um livro inteligente, construído de forma sublime, no que expressamente diz e no que deixa para imaginar. Uma das nossas escolhas 2014.



Acreditamos que, ainda que por fugazes momentos, todas as crianças têm um pai pássaro! Aqui fica o conselho do pai de Ícaro: "Nunca tenhas medo de voar."