quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Ler o Mundo

 
                                                                             
Ler o Mundo, com o subtítulo Experiências de transmissão cultural nos dias de hoje, da antropóloga francesa Michèle Petit, é o mais recente livro da colecção Ágora K, da editora Kalandraka. Um livro que é um poderoso testemunho para todos os que acreditam no poder da leitura e da arte em geral. Para todos os que amam os livros e, de alguma forma, tentam contagiar os outros com esse amor.
Petit reúne, nesta obra, um vasto número de relatos, experiências e caminhos percorridos por bibliotecários, professores, escritores, mediadores culturais, alunos, pessoas em geral. Há toda uma partilha assente em saberes, práticas , conversas, estudos, conferências... que nos é trazida através de uma escrita tão simples, quanto directa e eficaz. 
O inicio do livro elucida o leitor. Este livro é uma apologia. Para que a literatura, oral e escrita, e a arte sob todas as formas tenham um lugar na vida de todos os dias, em particular na das crianças e dos adolescentes. De forma genuína, a autora esclarece que o livro nasce de uma revolta. Uma revolta contra a obrigação de fornecer provas dos resultados da leitura, como se essa fosse a única razão de ser de ler. Porque é que a literatura e a arte têm de prestar contas? 
Uma revolta que nasce, também, da vontade de combater o utilitarismo, tantas vezes de vistas curtas. Do cansaço relativamente a todos os discursos de lamentação sobre a leitura ou ausência dela. Das lamúrias de culpabilização dos jovens por não terem vontade de ler, ainda que sejamos nós, adultos, quem, tantas vezes, os vacina contra a leitura. Uma revolta contra a instrumentalização da leitura nas escolas, dos livros e das obras de arte. 
Porque tantas vezes sentida, torna-se impossível ao leitor não concordar com a autora quando esta afirma que o essencial da leitura, quando não é regida pela obrigação ou pela utilidade imediata, são os momentos em que levantamos os olhos do livro e nos surgem associações inesperadas.
Para que serve ler? Porquê ler hoje? Qual a importância da leitura e da transmissão cultural

Porque devemos incitar crianças e jovens à leitura? 

Estas são algumas das questões a que tanto a autora como os seus interlocutores vão respondendo. Sem milagres. Sem fórmulas certas. Apenas com a certeza de que nas erradas não vale a pena persistir. 

Há um fio condutor que percorre o livro. Petit regista que ele está presente em todos os discursos dos interlocutores: desde a mais tenra idade e ao longo de toda a vida, a literatura oral e escrita e as práticas artísticas estão intimamente ligadas à possibilidade de encontrar um lugar. 

São múltiplas as associações com que o leitor se depara. Para uns, o livro é  a terra de asilo, uma paisagem, um país, o universo, um continente, um abrigo, um refúgio, uma choupana, uma cabana. Para outros, o livro é "um lugar meu", "a minha casa, sempre lá para me receber", "uma passagem secreta", "um transporte para algum lado".  Bem para lá do carácter útil e até do simples prazer,  ler é forjar uma arte de viver, mantendo uma parte da liberdade, do sonho, do imprevisto.

Ao longo desta apologia da leitura como coisa de todos os dias, Petit referencia dois conceitos subjacentes à essência da leitura: apropriação e segredo. 
"Apresento-te os livros porque uma imensa parte do que os seres humanos descobriram está aqui escondido". 
De uma maneira ou de outra, todos nos apropriamos das palavras. Ela própria deixa o convite para que os leitores se apropriem das suas, que as roubem, se for caso disso. A vontade é grande, até porque a autora nos vai lembrando o grande papel dos mediadores de leitura e educadores pela arte: saber tornar desejável a apropriação da cultura a quem dela está mais afastado.
"Apresento-te o mundo que outros me passaram e de que me apropriei. Pedacinhos de saber que passam de geração para geração. Agora, entre linhas lidas, escreve a tua própria história."
Para além da dimensão de apropriação selvagem, o desejo de ler está quase sempre envolto  na vontade de descobrir um segredo, de desvendar um mistério. Pais, professores, mediadores em geral... transformar a leitura e a arte em coisas de todos os dias, dependerá em muito da nossa arte de acolhimento e da nossa disponibilidade. Da nossa arte em levar os outros a ter "a cabeça suficientemente nas nuvens".
Testemunho poderoso,  Ler o Mundo, mais do que um livro é um lugar para se habitar muito tempo. E a que se voltará, seguramente, muitas vezes.
Porque atravessamos dias de muitas dúvidas e poucas certezas, roubamos as palavras de Michèle Petit para vos dizer: Mesmo que as crianças a quem lêem histórias não se tornem leitores, não terão perdido o vosso tempo. Terão recheado os bolsos delas, enchido a sua arca do tesouro de palavras, de histórias, de imagens, de que elas poderão apropriar-se para não se sentirem nuas, perdidas face ao que as rodeia, ou para enfrentarem os seus próprios demónios (...)

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