segunda-feira, 4 de novembro de 2024

A Gigantesca Pequena Coisa




 







A Gigantesca Pequena Coisa | Beatrice Alemagna | Orfeu Negro


É um luxo ver os livros de Beatrice Alemagna por cá, e logo em dose dupla! Num curto espaço de tempo, fomos presenteados com dois magníficos livros trazidos pela mão das editoras Orfeu Negro e Kalandraka. Depois de uma anterior edição, há muito esgotada, da Bags of Books, está de volta essa incrível Gigantesca Pequena Coisa.







































Uma coisa que passou mesmo ao lado dos pés do pequeno Sebastião, que uma menina tentou apanhar como se apanha uma mosca, que alguns esperam durante muito tempo sem conseguir encontrar ou reconhecer... Há quem tenha medo dela, feche as portas, construa muros ou quem a tente comprar. 
De modo sublime, enigmático e nostálgico, Alemagna constrói uma narrativa em torno de algo que atravessa todo o livro, mas que só no final é revelado ao leitor. Algo transversal a todas as personagens que percorrem as páginas. Homens ou mulheres, velhos ou novos. 







































Que coisa é essa? Há quem a encontre nos cheiros, nos olhares, nos braços de alguém. E também há quem chegue a encontrá-la num simples floco de neve, no meio da chuva ou numa lágrima. Momentos tão fugazes quanto maravilhosos. Não podemos retê-la, não a podemos guardar, mas, de uma forma ou de outra, procuramo-la.




























Pintado de cores que parecem sempre ser só suas, a autora é dona de um universo feito de poesia, beleza, delicadeza e com uma forte componente filosófica. Através de uma harmoniosa simbiose entre palavras e ilustrações, o seu trabalho denota uma coerência e uma estética inconfundíveis. 
Não hesitem. São razões mais do que suficientes para querer habitar os livros desta nossa autora de eleição.  Abram as páginas todas e vão lá desvendar que gigantesca pequena coisa é essa. Para nós é impossível e impensável não abrir qualquer um dos livros de Alemagna e ficar por lá, sentindo essa imperfeita perfeição.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Gaspar, com os pés bem assentes na Lua




Gaspar, com os pés bem assentes na Lua | Rita Taborda Duarte e Sebastião Peixoto | Caminho


Isto é um MANIFESTO pela PALAVRODIVERSIDADE!  A convocatória é para dia 26, às 16H.


Dona de um humor único e de uma escrita irreverente, quer escreva para adultos ou para crianças, Rita Taborda Duarte há muito que conquistou lugar cativo no universo literário. Tornaram-se crónicos Os Piolhos do Miúdo e os Miúdos do Piolho. Fred e Maria andam sempre por aqui e seja qual for a altura do ano, Sabes, Maria, o Pai Natal não Existe estará sempre à mão. A Verdadeira História da Alice, Gastão vida de cão ou Animais e Animenos são apenas alguns exemplos dos seus livros que povoam as prateleiras da casa. De regresso ao mundo dos mais novos, a autora brinda-nos com mais um livro singular, uma espécie de manifesto pela Palavrodiversidade. 









































Quanto mais palavras habitarem a nossa língua, mais forte se tornará o nosso mundo, o nosso pensamento, as nossas histórias!”


Assinaríamos de cruz, se fosse caso disso. Vivemos tempos pandémicos, cada vez com menos imunidade à "febre de facilitismo" em nome de uma suposta "escrita para crianças". Infantilizar a escrita consubstancia um grosseiro retrocesso e uma afronta a todos os que, ao longo do tempo, se bateram para que ocupasse o lugar que é seu no panorama da literatura. 

Não há palavras difíceis. Há palavras com que os mais os novos não estão familiarizados. O crescimento faz-se por aprendizagem e a diversidade de palavras é a riqueza de uma língua. 

Rita não tem medo de usar palavras. Muitas. Esse é o caminho que propõe para tornar o mundo maior e mais brilhante

Há por aqui uma parafernália  de palavras e expressões que os mais novos nunca terão ouvido. Muitas delas só as encontrarão nos dicionários, as casas de todas as palavras, também eles em desuso. E que bom é pensar que um livro pode ter o efeito de pôr os mais novos a descobrir dezenas de palavras ainda que possam buscar apenas o significado de uma. Algo que os adultos que estão por perto deviam incentivar. 







































É no meio de todas estas palavras que encontramos Gaspar, um rapaz com uma tumultuosa relação com a Lua. Não confia nela, acha-a mentirosa, traiçoeira, manhosa, trapaceira, perigosa. Não tem dúvidas sobre os efeitos que ela exerce nas pessoas que passam muito tempo com a cabeça lá em cima... ou os pés, como é o seu caso. Só não entende porque é que os adultos à sua volta se deixam enganar por ela. Tanto em casa como na escola, é um incompreendido. Por uma razão ou por outra, todos acham que aquela obsessão com a lua tem de acabar. Mas isso são os adultos a falar e, 

"(...)os adultos, enfim... são uma espécie pouco expedita, quase nada inteligente: não veem uma coisa nem que ela esteja a brilhar diante dos olhos."









































As palavras são brilhantemente acompanhadas pelas ilustrações de Sebastião Peixoto. Com uma sóbria paleta, com tons predominantemente castanhos e azuis, Peixoto ilumina com mestria os caminhos e os atalhos de quem está cá em baixo, mas passa a vida na superfície lunar. Um exímio contributo para alcançar esse mundo maior e mais brilhante que todos almejamos.

























Saber como termina esta contenda é aquilo que vos propomos quando vos convocamos para o lançamento de Gaspar, com os pés bem assentes na Lua, com a presença dos autores, no próximo dia 26, às 16H, nos Hipopómatos na Lua. E não, não se trata de uma mera coincidência lunar. Antes um enorme privilégio partilhar a lua com o nosso Gaspar, de quem já somos fãs incondicionais.
Mais ou menos aluados, venham daí manifestar-se! A palavra de ordem é PALAVRODIVERSIDADE. Sempre!


sexta-feira, 18 de outubro de 2024

A Colher



 























A Colher | Sandra Siemens e Bea Lozano | Fábula


Há pequenos objectos que transportam consigo histórias enormes. Alguns atravessam gerações. Se falassem seriam capazes de contar histórias intermináveis de vida, de afectos, de perdas. É esse o caso da colher que empresta o nome a este livro. 
























Um inicio algo enigmático prende-nos às primeiras páginas do livro. Quando a jovem narradora põe a mesa, reservando para si aquela colher, a voz da mãe faz-se ouvir: "Essa colher não". Segue-se um pequeno elenco dos usos que não lhe podem ser dados, e é ele que leva o leitor a aferir a importância da colher.

- "Essa colher não é para comer sopa", acrescenta a mãe.  

- "Essa colher não é para cavar buracos", esclarece a avó, num momento em que a pequena se atreve a fazê-lo. 

- "Essa colher não é para tocar música", diz o pai, ainda que ela sinta que nenhuma outra colher consegue emitir aquele som.























Acompanhamos a jovem nas suas interrogações. Afinal, porque está a colher na gaveta, juntamente com todas as outras,  se não pode ser usada? E qual a sua proveniência? Um simples virar de página é suficiente para nos esclarecer. A colher fez parte de um conjunto dado como prenda de casamento à sua bisavó. Num tempo em que foi forçada a fugir da guerra, esta foi a  única coisa que conseguiu salvar e trazer com ela. Talvez por isso, para os mais velhos, mais importante do que o lugar fisico que lhe está reservado, seja  vê-la todos os dias. Uma forma de ter presente o lugar, os tempo e as pessoas para junto de quem ela os transporta. Mais do que uma gaveta, há por ali um baú de memórias.























As magníficas ilustrações de Lozano espraiam-se, algo minimalistas, pelo fundo branco das páginas. Com uma paleta em tons amenos, somos levados a sentir-nos em casa, admirando a partilha daquele objecto tão emblemático para quem ali vive.
























A colher foi mudando de dona, mas nunca abandonou a família. Da bisavó passou para a avó e é agora da mãe. Um dia será pertença da nossa jovem.  Mas ela ainda não sabe se quer ser dona de uma colher que não pode ser usada para comer sopa, ou para cavar buracos, ou para tocar música. Não tem dúvidas que, em tempos,  a sua bisavó fez tudo isso. Tal como ela deixará , um dia, a sua filha fazer. Será?
























Quanto a nós, leitores, não conseguimos deixar de pensar nas colheres únicas que todos aqueles que, hoje, deixam a guerra para trás transportam consigo. Ou não.


terça-feira, 15 de outubro de 2024

Um e Sete

 





Um e Sete | Gianni Rodari e Beatrice Alemagna | Kalandraka


Quando Gianni Rodari escreveu este conto, que integra os Contos ao Telefone, talvez não suspeitasse que volvidos mais de 60 anos, ele fosse tão adequado aos tempos negros que vivemos e passível de tocar tão intensamente leitores de todas as idades. Magistralmente ilustrado por Beatrice Alemagna, esta ode à paz e à diversidade transforma-se num relato de esperança e amor que percorre a infância até à idade adulta. 



É a história de um rapaz que era sete meninos num só. Viviam em lugares distintos (grandes cidades capitais do mundo), falavam línguas diversas, mas quando riam, faziam-no na mesma língua. Sete meninos diferentes, afinal um só. Os pais têm profissões distintas, mas os meninos têm hábitos iguais. Todos sabem ler e  escrever, andar de bicicleta sem mãos, brincar, ser criança... 
Todos diferentes, todos iguais.



























Uma história tocante, de uma extrema sensibilidade que percorre  texto e ilustração. Mais do que actual, necessária. Este é um daqueles livros que sempre nos acompanha. Pena que os homens que, entretanto foram crescendo em tamanho, não tenham crescido em cabeça e coração e não o queiram, também eles, por companhia. 
















Era uma vez um rapaz que era sete meninos num só. Muito mais o que os une do que aquilo que os separa, quando crescem, no seu mundo, não há lugar para a guerra. Afinal são um só. Gostamos deste mundo e, tal como escrevemos aqui em 2017, há muito que fizemos a nossa reserva. 

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Gato Comum




Gato Comum | Joana Estrela | Planeta Tangerina


Tudo por aqui aparenta ser comum. O gato, a família, a casa, as rotinas. O que nada tem de comum é a mestria com que Joana Estrela, alicerçada na simplicidade das coisas de todos os dias,  constrói uma história intensa e tocante, levando o leitor a apropriar-se desta ou daquela vivência. Quem tem animais domésticos conhece a inevitabilidade da dor quando chega o momento de nos deixarem. Nesta história, a longevidade do gato faz adivinhar a proximidade do fim.



 



Manel, o gato da casa, tem a mesma idade de Cristina, a adolescente de 17 anos, filha única da família. É ela que abre as portas da casa para contar o que o leitor cedo percebe serem os últimos dias de vida do gato. O relato da rapariga é feito de memórias, de cumplicidades, de hábitos e rotinas, do muito que o Manel deu e recebeu, das suas manias, dos seus dias. Enquanto a morte não chega há por aqui a celebração de toda uma vida.







































A história do Manel é também a história das pessoas com quem partilha a vida, Cristina e os pais. O leitor conhece um pouco de cada um. Do que os une, do que os separa. O livro chegará ao fim e os dias do Manel também. A terrível frase que nunca queremos ouvir está mesmo atrás da porta: O Manel já não tem qualidade de vida. 
São dias amargos e tristes. A decisão tem de ser tomada, mas não é consensual nem constante. Porque muito dela se toma com o coração.







































"É sábado de manhã. O gato ainda está vivo. Mas também ainda está a morrer." 

Há muito para reflectir enquanto nos demoramos nesta casa. Dor, luto, morte, eutanásia. Retalhos de uma vida que se celebra, retratos da adolescência, o amor incondicional pelos animais que adotamos, as indecisões e a coragem sempre necessárias nos momentos difíceis, o fortalecimento da família... Há por aqui muitas histórias dentro da história.
O livro integra a coleção Dois Passos e Um Salto, onde a autora já assinou "Aqui é um Bom Lugar"(a meias com Ana Pessoa) e "Pardalita". Num tempo em que continuamos a ouvir recorrentemente que as nossas crianças se perdem para a leitura à medida que vão "adolescendo", estes são preciosos incentivos a que, seguramente, não ficarão indiferentes.







































Neste regresso de Estrela à BD, um reino  que parece seu por direito próprio, aplausos para este excepcional gato comum.


sexta-feira, 7 de junho de 2024

Quando é que a Hadda volta?

 






















Quando é que a Hadda volta? | Anne Herbauts | Orfeu Negro


Criadora de um universo delicado, belo e poético, Anne Herbauts é uma das nossas autoras de eleição. Somos admiradores confessos do seu trabalho desde o primeiro álbum, Que fait la lune, la nuit? e não hesitamos em afirmar o nosso fascínio pelo seu universo inigualável. A chegada de um dos seus livros, pela mão da Orfeu Negro, faz-nos acalentar o desejo de que muitos outros possam suceder-se.  


Detentora de um léxico gráfico inconfundível, Herbauts pega nas pequenas coisas da vida e eleva-as a uma dimensão profunda e filosófica. É nessa grandeza das coisas pequenas, que se revelam verdadeiramente importantes, que envolve os leitores, oferecendo-lhes um jogo sublime de emoções e arrebatamento. Os seus livros estão repletos de "portas semiabertas", cabendo-nos a decisão de as abrir ou fechar. São caminhos por desbravar, questões que se suscitam, interrogações que perduram e lugares impensáveis de visitar.
























Com livros para públicos de todas as idades, esta fazedora de objectos de arte nunca deixa de nos surpreender, deslumbrando-nos com as técnicas e materiais, desenhos, cores, texturas, colagens, recortes, sobreposições... Ainda assim, por vezes, há todo um minimalismo que atravessa a sua obra, com grande sobriedade, elegância e rigor. Como se o universo "herbautsiano" fosse um lugar diferente e único de onde, nalguns dias, não nos apetece sair. Formada em artes, a autora belga diz-se, também, amante das palavras. Não hesita em situar-se num espaço existente entre ambas, reconhecendo-lhes igual importância. A harmonia dos seus livros demonstra-o bem.

























Herbauts reconhece que o tempo é a sua matéria-prima preferida. Aqui não foge à regra e é ele o ponto de partida para este tocante e poderoso livro. Uma história que fala de ausência, mas também de recordação. Sem a presença de qualquer ser humano, o livro leva-nos pela intimidade da casa de alguém. Visitamos os recantos de uma vida, observamos os objectos, ouvimos o silêncio, sentimos o vazio. A dedicatória aposta no inicio já o indiciava, mas a autora não nos permite, em momento algum, a mínima dúvida sobre o facto de esta ser a casa de uma avó, sobre a sua ternura e amor incondicional pelo neto.





Quando é que a Hadda volta?


A insistente e única pergunta formulada ao longo de todo o livro é reveladora da dolorosa saudade e da inconformação sentidas pela criança. As respostas vão-se materializando nos pertences, nos cantos aconchegantes de uma vida que findou, mas que perdurará no coração daquela criança. Os óculos, as roupas, os naperons de renda, o jornal, a carteira, as inúmeras fotografias, as plantas, os sofás, o rádio, os apontamentos das partilhas vivenciadas e das brincadeiras a dois... As recordações que conferem a certeza de que esta ausência é tão somente física. 








































Pequenas frases poéticas vão tentando chegar ao coração da criança, no intuito de lhe dar a força de que necessita para ultrapassar a perda. Chegam em jeito de fogachos de uma "presença" efémera de quem já iniciou a derradeira viagem. Afinal, são os objectos e pertences, são aqueles lugares vividos pelos dois que lhe transmitem o muito que ela lhe deixou e o quanto dela continuará a viver nele. Hadda estará sempre por perto, o pequeno só tem de o descobrir.
Este é um álbum para todas as idades. Tocante, emocionante, belo e único. Só ao alcance de alguns. Mais uma vez, de Anne Herbauts.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Debaixo Da Mesma Lua

 






















Debaixo da mesma Lua | Jimmy Liao | Kalandraka

Há onze anos escrevíamos aqui sobre o fantástico mundo de Jimmy Liao. Na altura, referíamos que o autor é "mestre em pintar sentimentos ou estados de alma. A solidão, a melancolia ou a esperança chegam até nós, leitores, através de um simples jogo de cores ou de uma carruagem vazia. O sentido ou dessentido da vida é o fio condutor que nos prende sofregamente a cada livro que descobrimos".

























Neste caso, é em tons azuis e amarelos que Liao presenteia os leitores com mais um livro impregnado de beleza e de poesia. Ainda que a temática seja a guerra, a subtileza e a inteligência com que o autor construiu esta história fascinam leitores de todas as idades. Reafirmamos o que sempre dissemos a propósito dos seus livros: são um misto de arte e de poesia sem destinatário específico. 








































Num cenário quase imutável, um pequeno rapaz contempla a rua através da janela de sua casa. Sabemos que está à espera, mas não sabemos de quem. Pela postura corporal intuímos-lhe a nostalgia, a ansiedade e até uma certa solidão que sempre acompanham o acto de esperar. 
A espera aparenta não ser em vão. A cada virar de página vemos chegar alguns visitantes. Um leão, um elefante, uma grua. Como que em modo premonitório, todos chegam feridos e a casa parece ser uma espécie de abrigo seguro onde procuram ajuda. O pequeno Han não se faz rogado, tratando-lhes as feridas com todo o cuidado possível e de forma afectuosa. Mas, no dia seguinte, volta ao seu posto de vigia como que revelando ao leitor que cada visitante não passa de um acaso. Não era deles que estava à espera.


Neste lugar só a lua que nos revela a passagem do tempo e nos confere uma noção da persistência do pequeno protagonista. Nem o seu gato consegue ombrear com tamanha resistência. Sabemos que não está sozinho em casa. Sempre que recebe um visitante, o pequeno grita para avisar a mãe. Mas o leitor só a conhecerá no final da história. 
























Nunca saberemos quanto tempo passou. Mas a espera é sempre movida a esperança e o surpreendente final que Liao imaginou é revelador disso mesmo. Uma delicada, subtil e fascinante história sobre os infortúnios de uma guerra e de como eles nos podem atingir a todos. A lua é a mesma, mas a cor do céu não é igual para todos.