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quarta-feira, 12 de março de 2025

O TEMPO DO CÃO


 










O Tempo do Cão | António Jorge Gonçalves e Ondjaki | Caminho


Esta é a história de uma amizade provável entre um guerrilheiro e um cão. Nascida de um  encontro improvável entre Che Guevara e um animal perdido nos destroços de um palco que é o Congo. Para o leitor, é um mergulho num lago de afectos, cumplicidades, saudades e silêncios em tempo de guerra.























O formato pequeno e delicado agarra-se-nos às mãos, lembrando um daqueles objetos onde se guardam as pequenas grandes coisas da vida. A letra desenhada maiúscula ou minúscula, consoante a história é contada pelo homem ou pelo cão, funciona como avisador de que esta é uma história a duas vozes. As páginas azuis onde se espraiam os desenhos a  branco vivificam a partilha dos momentos, as pausas dos combatentes, a vida que sobra da guerrilha. Há por aqui todo um bailado entre as palavras que se distendem pelas páginas e os desenhos que as perpetuam. 




Através do cão, conhecemos um pouco mais dos guerrilheiros, esses fingidores que fingem não ter fome, não ter medo, nem saudades da família. Pelo guerrilheiro, ficamos a saber como o cão de olhos muito abertos se lhe atravessou no coração. Como a presença do silencioso companheiro pode aliviar o peso da arma e de tudo o que lhe falta em tempo de combate.



Ondjaki ter-se-à inspirado numa informação sobre um grupo de guerrilheiros que combateu no Congo e que, efectivamente, se terá cruzado com um cão. Che Guevara também passou por lá. O que, inicialmente, pensámos ser um tributo a Che, surge-nos agora como a celebração de todos  aqueles a quem a guerra não rouba o coração. Que continuam a saber amar, a criar laços, a derramar lágrimas na hora da despedida. Mesmo que seja por um animal.





A separação entre o cão do Che e o Che do cão afigura-se iminente assim que abrimos o livro. Há momentos em que nos queremos perder na narrativa. Para não termos de avançar, para não chegarmos ao fim. Comovemo-nos. Mas consolamo-nos na água e no leite que não havia partilhados com o cão. Nos silêncios vagarosos e nos olhares cúmplices divididos com o guerrilheiro. Revemo-nos no tempo do cão, impregnado pelo cheiro dos charutos, pelos pensamentos distantes, pela atenção e carícias dispensadas, pela presença do companheiro. Nos afectos, na amizade, na vida e no seu fim mais que provável.






Um livro onde há um abraço poético entre as palavras de Ondjaki, os incríveis desenhos de António Jorge Gonçalves e o design que também assina. Há como que um magnetismo que nos apanha desprevenidos, começando logo nos olhos que trespassam a capa e a alma do leitor. Num mundo de tantas guerras, vale a pena viver nas margens deste livro durante algum tempo. Olhando um pouco mais além, ainda vemos um cão que adormece com saudades de um guerrilheiro. 


Domingo, dia 16, às 16H, recebemos os autores para uma sessão de lançamento do livro. Esperamos por vocês.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

O Convidador de Pirilampos ou a arte de cientistar


Nas memórias  com sabor a infância guardamos as muitas noites de pirilampos vividas num tempo em que fomos meninos. Noites escuras e mágicas já partilhadas com os meninos de hoje. Quando, há uns anos, a Bruaá nos presenteou com o fantástico livro de Bruno Munari, Na noite escura, festejámos lá fora olhando as pequenas multidões de luzinhas que se passeavam no escuro, indiferentes à nossa presença.  


Foi o que voltámos a fazer quando nos chegou às mãos O Convidador de Pirilampos, com texto de  Ondjaki, ilustrações de António Jorge Gonçalves e editado pela Caminho.


Desta vez, na companhia de um pequeno rapaz e do seu avô, profundos conhecedores da Floresta Grande, onde brilham os pirilampos cintilantes. Antes de se embrenhar nela e de ser tentado a seguir no encalço das luminosas criaturas, o leitor fica logo a saber que nem todos os pirilampos têm brilho. Que existem pirilampos apagados!  E que são apagados porque não devem ser encontrados. Conhecidos como pirivelhos, são os mais sábios de todos. 


Mas, o leitor necessitará de atravessar a Floresta e toda a história para ficar a saber mais acerca destes pirivelhos e descobrir a razão porque não devem ser encontrados. Para isso, conta com a ajuda do rapaz inventor que carrega na mochila os objectos inventados. Cada um mais louco que o outro.


Um aumentador de caminhos, um unóculo e um convidador de pirilampos são alguns dos objectos utilizados para "cientistar" os seres luminosos. Os resultados, esses, acabam sempre partilhados com um avô paciente e com cheiro a laranja.


Um livro que, aqui e além, nos lembra o universo de Jimmy Liao. Histórias vividas num qualquer lugar do mundo e  povoadas de personagens sem nome que poderiam ser qualquer um de nós. Inconfundíveis, as ilustrações de António Jorge Gonçalves, vencedor do prémio Nacional de Ilustração 2013 com o livro da mesma dupla Uma Escuridão Bonita, voltam a um registo de silhuetas, sombras e jogo de luzes, com predominância de uma paleta de cores preta e azul. Ou não fosse esta mais uma história sem luz eléctrica.


Ondjakianos convictos, ficámos fãs deste pequeno inventor que, cientistando com paixão e afinco, acaba descobrindo o código da linguagem dos pirilampos. Um livro onde a poesia se passeia a cada página e onde as histórias são tantas quantos os contadores com que nos conseguirmos cruzar. Edison é, porém, o nosso contador de eleição.


Junho é o mês, por excelência, dos pirilampos. Em férias ou não, agarrem nas lanternas, nos miúdos, nos inventos, se fôr caso disso, e entrem noite dentro. Cientistem, cientistem!

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A Bicicleta Que Tinha Bigodes


- Tio Rui, posso falar dos restos de letras que a tia Alice tira do teu bigode à noite?
- Podes.
- Não vão querer vir na nossa rua roubar a caixa de letras?
- Não. Ninguém vai acreditar.


Nós acreditamos. Na rua de Ondjaki devia haver  mesmo uma caixa de letras, da qual ele nunca mais se separou! Transparentes, editado o ano passado pela Caminho, valeu-lhe ontem o Prémio José Saramago. Em Maio, o escritor angolano já tinha visto um outro livro ser premiado. A Bicicleta Que Tinha Bigodes foi considerado a melhor obra de 2012 para crianças e jovens  pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil brasileira. O mesmo livro que em Portugal já recebera o Prémio Bissaya Barreto de Literatura.
A Bicicleta Que Tinha Bigodes é uma história passada num bairro de Angola, desencadeada pelo anúncio de um concurso da Rádio Nacional que se propunha oferecer uma bicicleta à criança que apresentasse a melhor redacção.


É um hino à imaginação e à amizade, mas também às palavras e à escrita. "Nas bermas de uma língua toda desportuguesa"  conseguimos vivenciar a criatividade de três crianças que, querendo ganhar a bicicleta, buscam a ajuda do escritor importante que vive ali mesmo, na sua rua. O Tio Rui inventa estórias e poemas que até chegam a outros países muito internacionais, como a "Julgoeslávia".


Cedo se adivinha que  o vencedor do concurso não sairá desta rua e que  isso  não é assim tão relevante.  Enquanto leitores, precocemente descortinamos que tudo o que estas crianças vão ganhando, nas suas tentativas, é muito mais importante.
 

A redacção acaba por não sair, mas à Rádio Nacional de Angola chega uma carta. Hilariante e simultaneamente doce. Capaz de nos" arrancar" umas sonoras gargalhadas ao mesmo tempo que nos faz pensar nas coisas sérias da vida... São assim as cartas das crianças.


É uma história sobre gente. Que vive na mesma rua. Que cria laços. Mas onde também vivem animais, como a lesma Senghor, o cão AmílcarCãobralo gato Ghandi ou os gafanhotos... Narrada num tempo e num espaço, onde a luz eléctrica é muitas vezes uma  miragem, mas em que a televisão, especificamente as novelas brasileiras,  assume papel relevante. A escrita de Ondjaki  faz-nos desejar crescer livres e desprendidos, como só em África parece possível.


Numa entrevista ao Ler Mais, Ler Melhor, Ondjaki disse que se divertiu muito a escrever este livro. Que foi feliz. Nós também, quando o lemos.