O Tempo do Cão | António Jorge Gonçalves e Ondjaki | Caminho
Esta é a história de uma amizade provável entre um guerrilheiro e um cão. Nascida de um encontro improvável entre Che Guevara e um animal perdido nos destroços de um palco que é o Congo. Para o leitor, é um mergulho num lago de afectos, cumplicidades, saudades e silêncios em tempo de guerra.

O formato pequeno e delicado agarra-se-nos às mãos, lembrando um daqueles objetos onde se guardam as pequenas grandes coisas da vida. A letra desenhada maiúscula ou minúscula, consoante a história é contada pelo homem ou pelo cão, funciona como avisador de que esta é uma história a duas vozes. As páginas azuis onde se espraiam os desenhos a branco vivificam a partilha dos momentos, as pausas dos combatentes, a vida que sobra da guerrilha. Há por aqui todo um bailado entre as palavras que se distendem pelas páginas e os desenhos que as perpetuam.
Através do cão, conhecemos um pouco mais dos guerrilheiros, esses fingidores que fingem não ter fome, não ter medo, nem saudades da família. Pelo guerrilheiro, ficamos a saber como o cão de olhos muito abertos se lhe atravessou no coração. Como a presença do silencioso companheiro pode aliviar o peso da arma e de tudo o que lhe falta em tempo de combate.
Ondjaki ter-se-à inspirado numa informação sobre um grupo de guerrilheiros que combateu no Congo e que, efectivamente, se terá cruzado com um cão. Che Guevara também passou por lá. O que, inicialmente, pensámos ser um tributo a Che, surge-nos agora como a celebração de todos aqueles a quem a guerra não rouba o coração. Que continuam a saber amar, a criar laços, a derramar lágrimas na hora da despedida. Mesmo que seja por um animal.
A separação entre o cão do Che e o Che do cão afigura-se iminente assim que abrimos o livro. Há momentos em que nos queremos perder na narrativa. Para não termos de avançar, para não chegarmos ao fim. Comovemo-nos. Mas consolamo-nos na água e no leite que não havia partilhados com o cão. Nos silêncios vagarosos e nos olhares cúmplices divididos com o guerrilheiro. Revemo-nos no tempo do cão, impregnado pelo cheiro dos charutos, pelos pensamentos distantes, pela atenção e carícias dispensadas, pela presença do companheiro. Nos afectos, na amizade, na vida e no seu fim mais que provável.
Um livro onde há um abraço poético entre as palavras de Ondjaki, os incríveis desenhos de António Jorge Gonçalves e o design que também assina. Há como que um magnetismo que nos apanha desprevenidos, começando logo nos olhos que trespassam a capa e a alma do leitor. Num mundo de tantas guerras, vale a pena viver nas margens deste livro durante algum tempo. Olhando um pouco mais além, ainda vemos um cão que adormece com saudades de um guerrilheiro.
Domingo, dia 16, às 16H, recebemos os autores para uma sessão de lançamento do livro. Esperamos por vocês.
Sem comentários:
Enviar um comentário