quinta-feira, 27 de outubro de 2022

A Minha Voz é Linda

 






















A Minha Voz é Linda | Joseph Coelho e Allison Colpoys | Fábula


O livro abre a porta para a sala de aula de uma escola onde a diversidade das crianças salta à vista. Uma paleta de cores vibrantes e alegres encanta os leitores e demora-os na observação de cada detalhe. Em destaque, o cartaz que anuncia o recital de poesia e onde se lê:

VEM LER O TEU POEMA EM VOZ ALTA












 

A história é contada na primeira pessoa, com uma criança a confidenciar-nos a sua timidez e nervosismo perante a proximidade do evento. As imagens documentam bem o isolamento a que se remete por força dessa insegurança. A incapacidade de ler em voz alta é precedida da falta de comunicação com os seus pares. Os dias são feitos de silêncios que a tornam alvo fácil de gozo por parte dos colegas. 















A vida desta menina começa a mudar quando entra em cena a nova professora. Exuberante, com uma aparência algo excêntrica, a professora Flora é uma mulher viajada, conhecedora do mundo e das pessoas. E, pasme-se, ainda adora poesia!


Logo se percebe que adora contar aos seus alunos histórias dos muitos lugares por onde andou. Partilha com eles as grandes aventuras e as muitas experiências que vivenciou. E como todos os professores  de excepção com quem nos cruzamos na vida, Flora rapidamente percebe que a menina necessita de apoio para conquistar a sua autoconfiança.



A linguagem da cumplicidade e dos sussurros, que ambas conhecem bem, une aluna e professora.  Naquela sala de aula passa a haver tolerância zero para qualquer provocação por parte das outras crianças. Por entre histórias de heróis que ninguém vê e belas canções que ninguém ouve, a confiança da menina vai crescendo e os resultados começam a ser visíveis.
Flora sabe que é uma questão de tempo até que aquela voz se faça ouvir. Sabiamente, diz aos seus alunos que todos temos canções dentro de nós. Mas que só as cantaremos quando estivermos prontos. 























Até que chega o dia. A narrativa enche-se, agora, de metáforas visuais que conferem ao leitor a intensidade de tudo o que a criança tem de ultrapassar para conseguir vencer medo e ansiedade. Desde que se levanta da secretária até chegar ao sítio onde vai ler o seu poema, há montanhas que se escalam, vendavais que se atravessam... Estar à frente da turma, virada para os seus pares, equivale a estar à beira de um imenso  precipício. 





Vão até lá e encantem-se com a voz que, finalmente, se faz ouvir.  Por aqui, tivemos uma imensa vontade de voltar aos bancos da escola e de conhecer a professora Flora. De privar com o ser humano extraordinário que descobrimos neste livro e que acreditamos existir fora dele. Porque, muitas vezes, um professor faz toda a diferença.


quinta-feira, 20 de outubro de 2022

O Duelo


 






















O Duelo | Inês Viegas Oliveira | Planeta Tangerina


Podia ser a crónica de um duelo anunciado. Entramos preparados para um expectável cenário de luta, de conflito, de armas. A memória enche-se de um sem número de imagens cinéfilas onde os duelos eram coisa comum. Mas, às primeiras páginas, o leitor já está seduzido pela mudança do rumo da história. O anunciado não se concretiza. 1, 2, 3, 4... Um dos homens não se vira, decide seguir em frente. Cobardia?


Ele diz que não e nós acreditamos porque o vemos trocar um exército por uma banda de magníficos músicos. Apenas decidiu seguir em frente. Cabe ao leitor persegui-lo, embarcarcando numa viagem por um mundo onde não parece haver lugar para guerras. Uma viagem que se revela uma descoberta contínua de elementos e detalhes que nos oferecem uma deslumbrante narrativa visual. Afinal, este é um livro sobre paz.


Podemos não saber a localização certa, mas, tal como o nosso homem, sabemos que não estamos perdidos. Atravessamos o mundo. Por terra e por mar. Percorremos montes, vales e serras. Deambulamos pelo campo e por cidades. Vemos palácios, casas, cafés, teatros, pessoas, animais, artistas e malabaristas... Embrenhamo-nos nas páginas. Demoramo-nos. Queremos habitar todos aqueles lugares e tempos.


Sabemos que o homem que seguimos escolheu a paz. Gostamos das cores do mundo por onde caminha e do que vemos. Dos lugares aquecidos pelo sol, das muitas flores que pintam os recantos onde agora pertence. Não lhe conhecemos a identidade. Em contrapartida, sabemos que aquele com quem tinha duelo marcado dá pelo nome de Rodin Rostov. É a ele que se dirige ao longo de toda a sua caminhada. Um relato que partilha com os leitores e que chegará ao outro em forma de carta.






Excelentíssimo Senhor Doutor Rodin Rostov, assim começa a história. No final, ficamos a saber que mora no nº17 de um lugar muito longe e muito frio. A carta encerra um convite. Para que saia de lá. Para que também ele tenha a coragem de seguir em frente. Porque é disso que se trata. Deixar para trás as coisas pequenas e mesquinhas da vida, as quezílias, as zangas que não levam a lado nenhum.   Seguir em frente, em busca de um mundo melhor, será sempre um acto de coragem.



Autora de texto e ilustração, Oliveira demonstra aqui o domínio de ambas as linguagens, a escrita e a visual. Detentora de uma magnífica técnica e de um estilo encantador, o seu trabalho  parece envolto em influências expressionistas e reporta-nos, a espaços, para a obra do espanhol Javier Zabala. 

O traço fino com que dá vida às silhuetas, a multiplicidade dos elementos e a vibrante paleta de cores são contributos para um livro que respira sensibilidade e poesia. 




























Um livro que, certamente, encantará leitores de todas as idades. Um lugar a que se voltará muitas vezes. E onde, a cada regresso, faremos novas descobertas. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

A Minha Mãe é Um Bicho








































A Minha Mãe é Um Bicho | Victor Le Foll e Jeanne Sterkers | Orfeu Negro

O título não deixa dúvidas. A capa, exibindo uma personagem híbrida, incita à curiosidade do leitor. O início do livro faz as delícias dos mais pequenos que, desde logo, ficam a saber que aqui há uma mãe com um superpoder. E se há coisa que as crianças sabem bem, é que todas as mães têm superpoderes!







































Contada por uma criança, esta é uma história onde há uma mãe com o superpoder de se transformar em qualquer bicho. Num búfalo, quando precisa de ser forte para carregar as compras e as mochilas, num tubarão quando tem de enfrentar o cão dos vizinhos, num castor quando é necessário consertar coisas, num polvo quando tem de fazer muitas coisas ao mesmo tempo...








































Apontamentos de humor percorrem texto e ilustrações, revelando, a espaços, que superpoder não é sinónimo de perfeição. Enquanto cozinha, a mãe assemelha-se a  um rouxinol rouco que dá cabo dos ouvidos de quem está por perto, ressona como um urso e, por vezes, até consegue transformar-se num porquinho resmungão... 





As ilustrações, em acrílico e numa paleta de cores fortes, vão mostrando a metamorfose da mãe. A cada página da direita exibe-se uma nova transformação. Uma sucessão de magníficos retratos, de grande dimensão, que aparece ao leitor como uma espécie de bestiário da mãe.  É, aliás, esse o título original.



O vestuário da mãe surge, ao longo do livro, como denominador comum e uma espécie de fio condutor de toda a narrativa. Independentemente do animal em que se transforma, todos os leitores a conseguem identificar pelas peças de roupa que veste, nomeadamente, a garrida camisola de losangos.






































Com um final consonante com o amor e a ternura que caracterizam a relação entre mães e filhos, esta é uma história bem divertida que, aqui e acolá, nos faz lembrar A Minha Mãe de Anthony Brown.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

De Mãos Dadas



De Mãos Dadas | Christopher Cheng e Stephen Michael King | Nuvem de Letras

Um Rato e um Panda protagonizam esta história sobre amor incondicional, amizade e perda. O diálogo entre os dois  pontua a viagem que vão fazendo pelas estações do ano e suas intempéries. Uma viagem que evidencia e reforça os fortes laços que os unem,  ao mesmo tempo que dá ao leitor a noção do decurso do ciclo da vida. 


O pequeno rato formula as questões, interrogando o seu amigo sobre a força daquela união e se ela será suficientemente forte para superar todas as adversidades da vida. A cada resposta, o Panda revela a solidez da sua amizade. O afecto que demonstra é tocante. O leitor apreende-o nas respostas e nos gestos. A diferença de tamanho dos dois realça-o ainda mais. O carinho com que protege o pequeno amigo face ao vento, à chuva ou à neve, revela-se em cada abraço ou entrega de mãos. 


Ainda assim, o rato vai insistindo nas perguntas, repetindo a formulação dás-me a mão se...? E se eu ficar rabugento? E se eu fizer uma coisa muito, muito má? Cada resposta do Panda soa ainda mais reconfortante, indo sempre mais além na generosidade dos seus sentimentos. 


Christopher Cheng escreveu esta história na altura em que a mulher se debatia com um cancro. Sentiu necessidade de abrir o coração, partilhando os seus sentimentos sobre a forma como lidamos com a partida daqueles que amamos, mas que viverão para sempre no aconchego da nossa memória. A escolha dos personagens não fica a dever-se a um qualquer acaso, antes ao facto de serem os seus animais preferidos. King deu-lhes vida através do seu traço delicado, minimalista e sóbrio. 



De mãos dadas, ilustração e texto geram uma história que é, ao mesmo tempo, plena de fragilidade e de uma força capaz de tocar leitores de todas as idades.


A viagem não se faz só de intempéries. Ao longo das páginas, sobem montanhas juntos, partilham leituras, jogam xadrez...
Mas a pergunta que não queremos ouvir acaba por chegar. É diferente de todas as outras que o rato fez.
E se eu fôr para um sítio aonde não possas ir
A resposta que chega do amigo genial tem tanto de comovente, como de serena e apaziguadora. 

Com uma temática tão complexa como a morte, este é um livro belo e necessário.