quarta-feira, 14 de julho de 2021

Eu Falo Como Um Rio
























O P de pinheiro cria raízes que se enredam na minha língua. O C é um corvo que crava as garras no fundo da minha garganta. O M da madrugada lança um feitiço que prende os meus lábios num murmúrio.

É assim que o pequeno protagonista desta história nos descreve a sua gaguez. Cedo lhe adivinhamos a solidão e a luta que marcam cada nascer do dia. Num registo intenso e intimista, texto e imagens entrelaçam-se, oferecendo aos leitores um livro belo e tocante.
















O ritual é penoso, mas ele não nos oculta nada. Conta-nos que todas as manhãs acorda com aqueles sons de palavras encravados na boca. Permanece silencioso como uma pedra e prepara-se para cada novo dia sem palavras. Depois, chega a hora da escola.  Esconde-se no fundo da sala, desejando com todas as suas forças que não o vejam. Para não ter de falar. 


 





















Mas nem sempre isso acontece. Há dias mais difíceis  do que outros. As manhãs são sempre terríveis, mas a de hoje parece pior. O professor dirige-se a ele, é chegada a sua vez de falar. É o momento em que todos os outros olhos se fixam no menino a quem as palavras se encravam na boca. Hoje, está mais encravado que nunca. Só vê as bocas dos outros. Essas não encravam. Enchem-se de risos para troçar dele. Sabe que não vai conseguir. Só quer ir para casa.























É apenas um "dia não" para falar, diz o pai quando o vai buscar. O leitor acompanha-os até ao sítio mais tranquilo que aquele pai escolhe para apaziguar o seu menino. É aqui, no rio, que sentimos a sua tristeza, que vemos os seus olhos cheios de chuva, ainda que não lhe consigamos ver o rosto. Ficamos aliviados quando o braço do pai pousa no seu ombro, porque há já várias páginas que o queríamos abraçar. Ficamos felizes quando sentimos que o peso metafórico das palavras usadas se apresenta como um desbloqueio.

- Vês como a água se move? É assim que tu falas. Sim, o menino consegue ver a água a borbulhar, a agitar-se, a redemoinhar e a embater. Agora, sabe que fala como um rio. E é disso que se vai lembrar, sempre que tiver medo ou vontade de chorar. 























Eu Falo Como Um Rio, recentemente editado entre nós pela Fábula, tem texto de Jordan Scott e ilustrações do já nosso conhecido Sydney Smith, de quem falámos aqui. Scott é um poeta canadiano que parte da sua própria experiência para esta primeira incursão no universo da literatura infantil, ainda que a temática não seja nova no conjunto da sua obra. O seu texto é intenso, comovente e feito dessa dureza que é ser real. As ilustrações de Smith conferem-lhe uma dimensão extraordinária, justificando mais do que nunca as manchas, as imagens difusas e o toque impressionista, tão presentes no seu trabalho. O desdobrável que assinala o momento alto desta história abre-se aos olhos do leitor, recordando-lhe a imensidão da tristeza que experienciou com o menino. Ao mesmo tempo que lhe traz a imensidão do mar e de uma certa libertação. É um livro belo. 

Na contracapa lê-se que "este é um livro para quem se sente diferente, solitário ou incapaz de se integrar". Nós atrevemo-nos a acrescentar que é um livro para todos, sobretudo para os que têm dificuldade em aceitar a diferença.


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