quinta-feira, 22 de julho de 2021

A Mentira
























A Mentira, com texto de Catherine Grive e ilustrações de Frédérique Bertrand, publicada entre nós pela Livros Horizonte, é uma história predominantemente gráfica sobre um tema indissociável do universo infantil. Expressões como mentir é feio ou não se deve mentir, tantas vezes utilizadas pelos adultos na educação das crianças, nem sempre evitam os narizitos de Pinóquio. Esta é a altura da vida em que as inverdades andam quase sempre de mão dada  com a imaginação e um grande poder inventivo.

No caso desta história, não há necessidade de grandes discursos acerca da mentira ou do valor da verdade, já que as autoras optaram por uma representação gráfica da própria mentira, das proporções que ela pode tomar e bem assim do peso angustiante que pode acarretar para a criança. Surgindo, inicialmente, sob a forma de um pequeno ponto vermelho, ela vai crescendo e multiplicando-se ao longo das páginas do livro até atingir dimensões gigantescas. A menina que aqui surge como dona da mentira conta-nos que ela terá nascido num dia igual a tantos outros e que as palavras que lhe deram forma terão saído sozinhas. Um cenário nosso conhecido...







































Assim que nasce, a mentira revelava-se incómoda. Espera pela dona em todos os cantos da casa e segue-a por todo o lado fora dela. No quarto, na casa de banho, na rua, na escola, a mentira não a larga nem lhe dá descanso. Mesmo quando a menina a manda embora, ela volta. Ainda que tente  não olhar para ela, sabe que ela lá está. Vive angustiada e tem alturas que até imagina empurrá-la do cimo de uma montanha...
























O leitor vai acompanhando o crescimento da mentira, do seu peso. Primeiro, pelo aumento do tamanho. Num segundo momento, pela multiplicação da mesma, desdobrando-se em vários tamanhos. Ela torna-se omnipresente. Todos sabemos que a cada dupla página, ela se tornará maior. Os mais pequenos vão absorvendo as dimensões que ela vai ganhando e as proporções que atinge na vida da pequena dona. Proporções tantas vezes insignificantes aos olhos dos adultos, mas quase sempre gigantescas para a criança.

Com um texto curto, é, sobretudo, através das imagens que o leitor vai assimilando o crescimento e o peso da mentira na vida da sua dona. A cor vermelha não terá sido escolhida ao acaso e é passível de várias associações. Desde logo, a evocação do universo de Yayoi Kusama e das suas famosas bolas. A própria capa traz-nos à memória uma outra, a de Kusama: Infinity, The Life & Art Of Yayoi Kusama. Somos fãs do trabalho de Frédérique Bertrand e ficamos felizes quando vemos os seus livros por cá. Este é precioso para leitores de todas as idades.

O que aconteceu à mentira? Nada que uma boa dose de coragem, uma conversa com os pais sobre a verdade da mentira e um alfinete não resolvam... Boas e verdadeiras leituras!

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Eu Falo Como Um Rio
























O P de pinheiro cria raízes que se enredam na minha língua. O C é um corvo que crava as garras no fundo da minha garganta. O M da madrugada lança um feitiço que prende os meus lábios num murmúrio.

É assim que o pequeno protagonista desta história nos descreve a sua gaguez. Cedo lhe adivinhamos a solidão e a luta que marcam cada nascer do dia. Num registo intenso e intimista, texto e imagens entrelaçam-se, oferecendo aos leitores um livro belo e tocante.
















O ritual é penoso, mas ele não nos oculta nada. Conta-nos que todas as manhãs acorda com aqueles sons de palavras encravados na boca. Permanece silencioso como uma pedra e prepara-se para cada novo dia sem palavras. Depois, chega a hora da escola.  Esconde-se no fundo da sala, desejando com todas as suas forças que não o vejam. Para não ter de falar. 


 





















Mas nem sempre isso acontece. Há dias mais difíceis  do que outros. As manhãs são sempre terríveis, mas a de hoje parece pior. O professor dirige-se a ele, é chegada a sua vez de falar. É o momento em que todos os outros olhos se fixam no menino a quem as palavras se encravam na boca. Hoje, está mais encravado que nunca. Só vê as bocas dos outros. Essas não encravam. Enchem-se de risos para troçar dele. Sabe que não vai conseguir. Só quer ir para casa.























É apenas um "dia não" para falar, diz o pai quando o vai buscar. O leitor acompanha-os até ao sítio mais tranquilo que aquele pai escolhe para apaziguar o seu menino. É aqui, no rio, que sentimos a sua tristeza, que vemos os seus olhos cheios de chuva, ainda que não lhe consigamos ver o rosto. Ficamos aliviados quando o braço do pai pousa no seu ombro, porque há já várias páginas que o queríamos abraçar. Ficamos felizes quando sentimos que o peso metafórico das palavras usadas se apresenta como um desbloqueio.

- Vês como a água se move? É assim que tu falas. Sim, o menino consegue ver a água a borbulhar, a agitar-se, a redemoinhar e a embater. Agora, sabe que fala como um rio. E é disso que se vai lembrar, sempre que tiver medo ou vontade de chorar. 























Eu Falo Como Um Rio, recentemente editado entre nós pela Fábula, tem texto de Jordan Scott e ilustrações do já nosso conhecido Sydney Smith, de quem falámos aqui. Scott é um poeta canadiano que parte da sua própria experiência para esta primeira incursão no universo da literatura infantil, ainda que a temática não seja nova no conjunto da sua obra. O seu texto é intenso, comovente e feito dessa dureza que é ser real. As ilustrações de Smith conferem-lhe uma dimensão extraordinária, justificando mais do que nunca as manchas, as imagens difusas e o toque impressionista, tão presentes no seu trabalho. O desdobrável que assinala o momento alto desta história abre-se aos olhos do leitor, recordando-lhe a imensidão da tristeza que experienciou com o menino. Ao mesmo tempo que lhe traz a imensidão do mar e de uma certa libertação. É um livro belo. 

Na contracapa lê-se que "este é um livro para quem se sente diferente, solitário ou incapaz de se integrar". Nós atrevemo-nos a acrescentar que é um livro para todos, sobretudo para os que têm dificuldade em aceitar a diferença.


quinta-feira, 8 de julho de 2021

Tu e Eu e Todos


 





















Tu e Eu e Todos do argentino Marcos Farina, editado pela Orfeu Negro, é uma boa companhia para as férias. Um livro que nos ajuda a mostrar às crianças que, independentemente da cor da pele ou do lugar onde vivem, todos partilham sentimentos e emoções. Cada um à sua maneira, todos vivenciam hábitos e experiências comuns.


Todos comemos, todos dormimos, todos brincamos... Há momentos em que nos sentimos tristes.  Outros há em que estamos felizes. Às vezes, zangamo-nos, ficamos furiosos. Sentimos medo. Às vezes, rimos e ficamos alegres. E todos sonhamos. 















Uma abordagem simples e eficaz sobre a diversidade e aquilo que nos une. Sobre o cuidado e o respeito pelos outros. Todos diferentes, mas iguais em tantas coisas. Semelhanças e diferenças que nos chegam, acima de tudo, através das imagens. Os mais pequenos identificam-se com elas e descobrem rapidamente as afinidades. 























Ao longo de todo o livro, a  simplicidade parece andar de mãos dadas com uma certa pureza que associamos à infância.  Sem filtros, sem preocupações do "politicamente correcto"... Todos fazem xixi, não há como negá-lo. Só que uns de pé, outros sentados. Esta é uma das imagens de que mais gostamos nesta história que nos ajuda a encontrar pontes para nos mantermos unidos. Bem precisamos!