sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Onde é que nós íamos? Livros que folhearam 2024


 





















Onde é que nós íamos?| Isabel Minhós Martins, Dina Mendonça e Madalena Matoso | Planeta Tangerina


Esta é uma conversa que queremos ter. Aceitamos sem reserva o convite das autoras para, ao longo de mais de 150 páginas, dissecarmos esta temática que faz parte da essência humana: a conversa. O diálogo com o leitor começa logo na introdução, onde nos dizem que conversar é ir andando. Seguimos juntos na tentativa de criar esse espaço de liberdade para pensarmos e ouvirmos o que outras pessoas pensam.
























Do que estamos a falar quando falamos de conversar? Porque gostamos tanto de conversar?

O desafio é claro, vamos experimentar. São muitas as perguntas, os exemplos, as hesitações, as interrupções, os avanços e recuos. Há conversas mais difíceis do que outras. Há pessoas com quem conseguimos falar mais facilmente. Outras nem tanto. Há conversas que nos deixam descobrir coisas boas e coisas menos boas. Umas que nos deixam felizes, outras que nos entristecem. Há conversas que correm mal. Recomeçamos?























Sim, recomeçamos. Todos sabemos que há conversas mais difíceis do que outras. Às vezes, também são como os novelos. Precisamos de desatar os nós. Mas as autoras sabem que esta conversa tem pernas para andar e, enquanto dialogam  com os leitores, vão deixando sugestões de algumas ideias para manter boas conversas. infinitas maneiras de conversar e infinitos temas para abordar. Trocamos opiniões, aprendemos com as diferentes ideias dos nossos interlocutores, assimilamos a importância e o prazer de conversar, percorremos os imensos lugares, novos ou revistados, onde podemos chegar juntos. 























Conversar faz parte de sermos humanos, e a forma como conseguimos comunicar é uma parte muito importante de nos sentirmos bem com o mundo. Conversar não resolve tudo, mas é fundamental para fazermos o caminho em conjunto


Afinal as conversas são como as cerejas. Pelo meio, são muitos os temas que vão surgindo.A paz ou a falta dela, as  lutas sangrentas, as diferenças de opiniões, as inseguranças, o prazer de conversar. São vários os autores referenciados. Porque as  conversas são como as cerejas. Algo que a capa de Matoso não nos deixa esquecer. Por aqui, a conversa começa mesmo antes de abrirmos o livro.









 
























Isto tem muito que se lhe diga... Onde é que nós íamos?  é um livro que nos faz pensar, reflectir, indagar, praticar, dar passos para nos entendermos melhor. Acima de tudo, descobrir ou redescobrir o prazer de conversar com os outros ou com os nossos botões. É um livro que nos interrompe a vida para nos pôr a falar sobre ela. 
Onde é que nós íamos? Aqui, num dos livros que é, obviamente, uma das nossas escolhas de 2024. Boas leituras e boas conversas!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

O Que Nos Torna Humanos. Livros que folhearam 2024
























O que nos torna humanos | Victor D. O. Santos e Anna Forlati | Fábula


Poucos saberão que vivemos a "Década Internacional das Línguas Indígenas", declarada pela ONU em 2022 com o propósito de preservar, revitalizar e divulgar as línguas indígenas, muitas das quais correm o risco de desaparecer. Este livro, traduzido em mais de 20 línguas e adoptado como livro oficial da Década Internacional das Línguas Indígenas pela UNESCO, é uma preciosa homenagem à língua e a todos os povos que a criaram. Um valioso testemunho artístico do que podemos considerar as " raízes da humanidade".  























Celebrando a língua em todas as suas vertentes, este é um livro lugar que, rapidamente, se transforma em ponto de encontro para leitores de todas as idades. As frases curtas e poéticas lançam o enigma. O diálogo direto com o leitor, nesta espécie de "adivinha quem eu sou", confere-lhe a intensidade necessária para nos envolver avidamente na descoberta do mistério. Uma avidez só refreada pela soberba beleza das ilustrações, que nos faz parar a cada dupla página para olhar demoradamente e reflectir.






















A cada página somos desafiados para a descoberta do enigma, mas também ficamos a saber um pouco mais de quem se vai apresentando, falando diretamente com e para o leitor. Talvez este não descodifique o enigma sozinho. Mas isso não lhe retira o prazer da leitura, do jogo que ambos já iniciaram. A revelação chega no final do livro. Num lugar onde sentimos que todos pertencemos.



Numa nota final aos leitores, os autores dizem-nos que das cerca de 7164 línguas vivas actualmente, se estima que, pelo menos metade se extinga até ao ano de 2100. E quando uma língua morre, também uma cultura pode morrer com ela. 

A dupla de autores  já se estreara a trabalhar em conjunto com My Dad, My Rock, um livro que gostaríamos muito de ver por cá. Aqui volta a encontrar-se, presenteando-nos com um livro que é, simultaneamente, casa e abrigo para todos os que acreditam que a união em torno da diversidade é a nossa grande riqueza  e o que os torna mais fortes. Forlati escolheu pintar a poesia das palavras de Santos com uma paleta onde parece verter toda a nostalgia do tempo em que tudo começou. Os tons terra ou tons raízes predominam e a beleza de cada dupla página passa-nos à frente de forma estonteante, fazendo-nos querer apanhar boleia.  E, de alguma forma, contribuir para a preservação de tamanho património.


















De Forlati já tínhamos falado aqui, a propósito desse livro incrível que é  Le Renard et L'Aviateur. Dissemos como nos impressiona a beleza extraordinária de que sempre se reveste o seu trabalho, o seu traço realista e de como as suas cores e formas abraçam e envolvem poeticamente os textos. Aqui não é excepção, dando o seu contributo para um livro único e marcante, onde o leitor vai querer habitar algum tempo. Uma das nossas escolhas em 2024.



sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Transparente. Livros que folhearam 2024

 





















Transparente | Mariana Rio | Livros Horizonte


Transparente marca a primeira incursão de Mariana Rio pelo universo da escrita. Com um percurso brilhante na ilustração, vários livros, prémios e distinções no currículo, Rio vem construindo, ao longo da última década, uma identidade e um mundo próprios. A conquista de um lugar no panorama da ilustração nacional e internacional está assegurada. Dona de um vocabulário gráfico inconfundível, reconhecemos-lhe o traço fino e minucioso, as paletas de cores fortes, a incessante  busca pelos detalhes e por uma certa perfeição imperfeita. Somos fãs do seu trabalho desde a primeira hora e, hoje como ontem,  continuamos a encantar-nos com a sua criatividade.   Descortinamos-lhe sempre uma certa inocência de criança que a mulher parece querer guardar. A autoria plena dos seus livros não só se adivinhava como se desejava. Esta é uma estreia preciosa e merecedora de aplausos.



       

Sou um explorador da imaginação. Gosto de sonhar acordado e de viajar pelos meus pensamentos.                                                

O começo de um livro é precioso e, tal como Maria Gabriela Llansol, Rio parece saber isso. Prende o leitor logo nas primeiras frases desta história sobre a temática intemporal da amizade. Uma temática que acaba por se desdobrar ao longo das páginas. Porque como é seu hábito, a autora conduz-nos  por várias camadas de leitura, transportando-nos para um caminho bem mais abrangente do que, eventualmente, o leitor esperaria. Amizade, autoconhecimento, sonho, realidade, mistério... a diferença, o outro...uma certa ode à vida saudável e sustentável... bem podemos escolher a árvore a que queremos trepar para nos deitarmos a pensar no tanto que este livro contém.
























O sonhador protagonista, nas suas deambulações, encontra uma floresta selvagem, repleta de vegetação, e por lá decide ficar. Há por ali toda um nova vida e ele não hesita em explorá-la. Descobre insectos enormes e flores monumentais, passa a alimentar-se de frutos, folhas, raízes e sementes, dá mergulhos no ribeiro, trepa às árvores em busca de lugares perfeitos para se deitar a pensar. Como amante e estudante da natureza, constrói o seu abrigo-laboratório neste pedaço de paraíso. Tudo o que precisa encontra-se ali. 

Um dia, tem um encontro inesperado com um ser bem diferente dele. Um ser transparente e capaz de se metamorfosear. Fica assustado. Porque, num primeiro momento, tudo o que é diferente pode causar medo. Até então, aquela paisagem era só sua! O tempo foi-se gastando e o nosso sonhador envelhecendo. Os seus pensamentos tornaram-se mais complexos e o  conhecimento de si próprio e do que o rodeava apurou-se. O reencontro com o outro já não o atemoriza. Agora, também ele consegue ser transparente. Porque o caminho de construção da amizade passa, necessariamente, pelo conhecimento de nós mesmos. Só assim estamos aptos a aceitar e a conhecer o outro e as suas diferenças. É nessa transparência que todos nos devíamos encontrar.

 























À semelhança do protagonista, acreditamos que Rio é uma exploradora da imaginação e que no seu abrigo-laboratório continuará a sonhar acordada.  Que das viagens pelos seus pensamentos de menina mulher, continuarão a surgir livros polvilhados de poesia, tanto nas imagens como nas palavras. Este é um livro poético, delicado e capaz de despertar a imaginação de leitores de todas as idades.  Uma das nossas escolhas em 2024.


sexta-feira, 22 de novembro de 2024

STOP








































STOP | Ricardo Henriques e Pierre Pratt | Orfeu Negro


Os mais novos não o conhecem. Nunca o viram e, muito provavelmente, não ouviram falar dele. Na verdade, é uma espécie em vias de extinção. Ou, como se diz nesta história, um mamífero raro, ainda mais do que o tigre-de-bengala, o rinoceronte-branco ou aquela pessoa-que-escreve-cartas-de-amor. Vestido a rigor, com o típico capacete branco que lhe granjeou a alcunha de "cabeça de giz", luvas brancas a evidenciar o frenético gesticular de mãos e braços, apito na boca, eis o polícia sinaleiro. 
























Do alto do seu "trono" era dele a responsabilidade de orientar o trânsito. Veículos ou peões, todos obedeciam à sinaléctica, confiando-lhe a sua própria segurança. Falamos de um tempo em que as máquinas de três cores, vulgo semáforos, ainda não tinham sido inventadas. Hoje, já não nos lembramos das ruas sem elas e os polícias sinaleiros foram desaparecendo. São muito poucos os que existem. Quase nenhuns. 
























Que o diga o agente Simões, o polícia sinaleiro desta história. A chegada dos semáforos ao seu cruzamento deixou-o sem emprego e mudou-lhe a vida por completo. Ainda pensou declarar guerra ao inimigo, mas atrapalhar o trânsito não era coisa para ele. Mas desenganem-se os que pensam que o nosso agente se deixou abater. Não podia ficar de braços parados e foi em busca de nova ocupação. Afinal, a vida é feita de recomeços e de novas oportunidades. Foi assim que o agente Simões se viu a dirigir uma orquestra e, imaginem, até um farol... mas nada daquilo era para ele. O que, a esta altura, Simões não suspeitava era que lhe estivesse destinada uma missão muito maior, a de salvar o mundo. 


STOP é uma história divertida e cheia de humor, que ao mesmo tempo nos faz acreditar em recomeços, em persistência e determinação, em "não baixar os braços".  As magníficas ilustrações de Pratt, no seu traço inconfundível, espraiam-se pela páginas em brilhantes arranjos de tamanhos e perspectivas, dando-nos uma visão quase cinéfila da vida e das peripécias reservadas ao sinaleiro Simões. Texto e imagens complementam-se com mestria.





















Sim, o nosso polícia sinaleiro acabou por salvar o mundo, conquistar o seu lugar na história, tornar-se um herói mundial. E, mais importante, assegurar a continuidade dos sinaleiros já que hoje percorre o mundo, de Alpalhão a Brooklyn, conhecendo-lhe os cruzamentos todos. 




Para conhecerem a dimensão da proeza abram o livro, percorram as ruas com os mais novos, fiquem atentos ao apito do agente Simões e soltem as gargalhadas da criançada. STOP.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

A Gigantesca Pequena Coisa




 







A Gigantesca Pequena Coisa | Beatrice Alemagna | Orfeu Negro


É um luxo ver os livros de Beatrice Alemagna por cá, e logo em dose dupla! Num curto espaço de tempo, fomos presenteados com dois magníficos livros trazidos pela mão das editoras Orfeu Negro e Kalandraka. Depois de uma anterior edição, há muito esgotada, da Bags of Books, está de volta essa incrível Gigantesca Pequena Coisa.







































Uma coisa que passou mesmo ao lado dos pés do pequeno Sebastião, que uma menina tentou apanhar como se apanha uma mosca, que alguns esperam durante muito tempo sem conseguir encontrar ou reconhecer... Há quem tenha medo dela, feche as portas, construa muros ou quem a tente comprar. 
De modo sublime, enigmático e nostálgico, Alemagna constrói uma narrativa em torno de algo que atravessa todo o livro, mas que só no final é revelado ao leitor. Algo transversal a todas as personagens que percorrem as páginas. Homens ou mulheres, velhos ou novos. 







































Que coisa é essa? Há quem a encontre nos cheiros, nos olhares, nos braços de alguém. E também há quem chegue a encontrá-la num simples floco de neve, no meio da chuva ou numa lágrima. Momentos tão fugazes quanto maravilhosos. Não podemos retê-la, não a podemos guardar, mas, de uma forma ou de outra, procuramo-la.




























Pintado de cores que parecem sempre ser só suas, a autora é dona de um universo feito de poesia, beleza, delicadeza e com uma forte componente filosófica. Através de uma harmoniosa simbiose entre palavras e ilustrações, o seu trabalho denota uma coerência e uma estética inconfundíveis. 
Não hesitem. São razões mais do que suficientes para querer habitar os livros desta nossa autora de eleição.  Abram as páginas todas e vão lá desvendar que gigantesca pequena coisa é essa. Para nós é impossível e impensável não abrir qualquer um dos livros de Alemagna e ficar por lá, sentindo essa imperfeita perfeição.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Gaspar, com os pés bem assentes na Lua




Gaspar, com os pés bem assentes na Lua | Rita Taborda Duarte e Sebastião Peixoto | Caminho


Isto é um MANIFESTO pela PALAVRODIVERSIDADE!  A convocatória é para dia 26, às 16H.


Dona de um humor único e de uma escrita irreverente, quer escreva para adultos ou para crianças, Rita Taborda Duarte há muito que conquistou lugar cativo no universo literário. Tornaram-se crónicos Os Piolhos do Miúdo e os Miúdos do Piolho. Fred e Maria andam sempre por aqui e seja qual for a altura do ano, Sabes, Maria, o Pai Natal não Existe estará sempre à mão. A Verdadeira História da Alice, Gastão vida de cão ou Animais e Animenos são apenas alguns exemplos dos seus livros que povoam as prateleiras da casa. De regresso ao mundo dos mais novos, a autora brinda-nos com mais um livro singular, uma espécie de manifesto pela Palavrodiversidade. 









































Quanto mais palavras habitarem a nossa língua, mais forte se tornará o nosso mundo, o nosso pensamento, as nossas histórias!”


Assinaríamos de cruz, se fosse caso disso. Vivemos tempos pandémicos, cada vez com menos imunidade à "febre de facilitismo" em nome de uma suposta "escrita para crianças". Infantilizar a escrita consubstancia um grosseiro retrocesso e uma afronta a todos os que, ao longo do tempo, se bateram para que ocupasse o lugar que é seu no panorama da literatura. 

Não há palavras difíceis. Há palavras com que os mais os novos não estão familiarizados. O crescimento faz-se por aprendizagem e a diversidade de palavras é a riqueza de uma língua. 

Rita não tem medo de usar palavras. Muitas. Esse é o caminho que propõe para tornar o mundo maior e mais brilhante

Há por aqui uma parafernália  de palavras e expressões que os mais novos nunca terão ouvido. Muitas delas só as encontrarão nos dicionários, as casas de todas as palavras, também eles em desuso. E que bom é pensar que um livro pode ter o efeito de pôr os mais novos a descobrir dezenas de palavras ainda que possam buscar apenas o significado de uma. Algo que os adultos que estão por perto deviam incentivar. 







































É no meio de todas estas palavras que encontramos Gaspar, um rapaz com uma tumultuosa relação com a Lua. Não confia nela, acha-a mentirosa, traiçoeira, manhosa, trapaceira, perigosa. Não tem dúvidas sobre os efeitos que ela exerce nas pessoas que passam muito tempo com a cabeça lá em cima... ou os pés, como é o seu caso. Só não entende porque é que os adultos à sua volta se deixam enganar por ela. Tanto em casa como na escola, é um incompreendido. Por uma razão ou por outra, todos acham que aquela obsessão com a lua tem de acabar. Mas isso são os adultos a falar e, 

"(...)os adultos, enfim... são uma espécie pouco expedita, quase nada inteligente: não veem uma coisa nem que ela esteja a brilhar diante dos olhos."









































As palavras são brilhantemente acompanhadas pelas ilustrações de Sebastião Peixoto. Com uma sóbria paleta, com tons predominantemente castanhos e azuis, Peixoto ilumina com mestria os caminhos e os atalhos de quem está cá em baixo, mas passa a vida na superfície lunar. Um exímio contributo para alcançar esse mundo maior e mais brilhante que todos almejamos.

























Saber como termina esta contenda é aquilo que vos propomos quando vos convocamos para o lançamento de Gaspar, com os pés bem assentes na Lua, com a presença dos autores, no próximo dia 26, às 16H, nos Hipopómatos na Lua. E não, não se trata de uma mera coincidência lunar. Antes um enorme privilégio partilhar a lua com o nosso Gaspar, de quem já somos fãs incondicionais.
Mais ou menos aluados, venham daí manifestar-se! A palavra de ordem é PALAVRODIVERSIDADE. Sempre!


sexta-feira, 18 de outubro de 2024

A Colher



 























A Colher | Sandra Siemens e Bea Lozano | Fábula


Há pequenos objectos que transportam consigo histórias enormes. Alguns atravessam gerações. Se falassem seriam capazes de contar histórias intermináveis de vida, de afectos, de perdas. É esse o caso da colher que empresta o nome a este livro. 
























Um inicio algo enigmático prende-nos às primeiras páginas do livro. Quando a jovem narradora põe a mesa, reservando para si aquela colher, a voz da mãe faz-se ouvir: "Essa colher não". Segue-se um pequeno elenco dos usos que não lhe podem ser dados, e é ele que leva o leitor a aferir a importância da colher.

- "Essa colher não é para comer sopa", acrescenta a mãe.  

- "Essa colher não é para cavar buracos", esclarece a avó, num momento em que a pequena se atreve a fazê-lo. 

- "Essa colher não é para tocar música", diz o pai, ainda que ela sinta que nenhuma outra colher consegue emitir aquele som.























Acompanhamos a jovem nas suas interrogações. Afinal, porque está a colher na gaveta, juntamente com todas as outras,  se não pode ser usada? E qual a sua proveniência? Um simples virar de página é suficiente para nos esclarecer. A colher fez parte de um conjunto dado como prenda de casamento à sua bisavó. Num tempo em que foi forçada a fugir da guerra, esta foi a  única coisa que conseguiu salvar e trazer com ela. Talvez por isso, para os mais velhos, mais importante do que o lugar fisico que lhe está reservado, seja  vê-la todos os dias. Uma forma de ter presente o lugar, os tempo e as pessoas para junto de quem ela os transporta. Mais do que uma gaveta, há por ali um baú de memórias.























As magníficas ilustrações de Lozano espraiam-se, algo minimalistas, pelo fundo branco das páginas. Com uma paleta em tons amenos, somos levados a sentir-nos em casa, admirando a partilha daquele objecto tão emblemático para quem ali vive.
























A colher foi mudando de dona, mas nunca abandonou a família. Da bisavó passou para a avó e é agora da mãe. Um dia será pertença da nossa jovem.  Mas ela ainda não sabe se quer ser dona de uma colher que não pode ser usada para comer sopa, ou para cavar buracos, ou para tocar música. Não tem dúvidas que, em tempos,  a sua bisavó fez tudo isso. Tal como ela deixará , um dia, a sua filha fazer. Será?
























Quanto a nós, leitores, não conseguimos deixar de pensar nas colheres únicas que todos aqueles que, hoje, deixam a guerra para trás transportam consigo. Ou não.