A dupla é de peso e conta já com 4 livros na coleção Dois Passos e Um Salto da editora Planeta Tangerina, destinada a adolescentes e leitores mais crescidos. Ana Pessoa é, actualmente, um nome incontornável na escrita sobre e para a adolescência. Bernardo P. Carvalho dispensa apresentações e do seu trabalho conjunto nasceram já alguns livros marcantes no panorama da literatura juvenil: Supergigante, O Caderno Vermelho da Rapariga Karateka e Mary John. Desvio volta a juntar os dois. Desta feita, numa novela gráfica que promete marcar o verão de todos os que aceitem fazer a viagem.
Porque a vida é feita de coincidências, ainda que tenha nascido antes da pandemia, a história surge sob o signo do confinamento, a que tantas vezes os adolescentes se remetem. Miguel é um jovem lisboeta de 18 anos, sozinho em casa. A opção foi sua. Os pais foram de férias e ele não quis ir. Os amigos estão num qualquer festival de verão, que ele recusou. A namorada pediu-lhe um tempo, uma pausa. E Miguel decidiu fazer uma pausa de tudo neste mês de agosto. Como se o calor do verão fosse o ideal para congelar medos, inseguranças, frustrações, incertezas. Ou, talvez porque, aos 18 anos, os silêncios e a solidão sejam os melhores companheiros para visitar os conflitos existenciais que nos assolam, para contabilizar dúvidas enquanto nos tentamos descobrir e conhecer.
Com a casa e a vida só para si, o jovem inicia uma viagem interior em que percorre, não só as tormentas geradoras da sua crise de identidade, como também alguns temas estruturantes que atravessam esta fase da vida. Miguel sabe que não sabe o que quer, que os outros esperam sempre qualquer coisa dele que ignora o que seja, que os dias são quase sempre vazios, que todas as coisas à sua volta são suficientemente desinteressantes... ainda que algumas o mantenham à tona. As aulas de código são uma seca, mas necessárias. Regar as flores da mãe, pedido expresso e reiterado, é tarefa a que não pode esquivar-se. Fora delas, distende-se a si e ao seu desinteresse pelos cantos da casa, rodeando-se rotineiramente da televisão, dos jogos de computador e do telemóvel, nem sempre ligado. Só os cigarros parecem ter algum efeito terapêutico, assemelhando-se a pequenas pausas dentro da grande pausa. Miguel está perdido, em busca de si mesmo, do mesmo modo que continua a perder-se nalgumas ruas da sua cidade, no meio das multidões de turistas.
Pelo meio, devassamos-lhe a intimidade. Ficamos a conhecer os problemas de relacionamento com o pai, apesar das semelhanças, a fragilidade e a dureza do posicionamento da mãe entre ambos, a falta de proximidade, a ligação com a tia pouco resolvida com a vida, a precariedade e a inconstância do namoro... Ficamos a conhecer um adolescente igual a tantos outros, avesso a expressar sentimentos através de beijos e abraços, mas nem por isso menos sensível, continuando a sentir a falta de Rúben, o cão que morreu, sempre que chega a casa. Um rapaz que gosta de almôndegas, arroz com batata frita e sopa de letras.
Uma novela gráfica onde texto e ilustrações se respeitam mutuamente. Onde não há qualquer desvio à qualidade e inteligência a que escritora e ilustrador já nos habituaram. Onde há tempo e lugar para os silêncios e pausas do Miguel. Onde as cores quentes de agosto nos fazem percorrer uma vida ou várias, uma casa e uma cidade com a intensidade e a mestria só ao alcance de alguns. Cá por casa, encantou toda a gente, tendo arrancado do adolescente que o leu de um só fôlego, o sentido comentário: "muito bem esgalhado"... Com as regras de trânsito estudadas ou não, o desvio é para fazer. Porque este é o verão de todos os desvios.
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