quinta-feira, 23 de maio de 2019

Cândido e os Outros


"A cabeça do Cândido parece uma que vi do Picasso. Uma que também não está em cima dos ombros".
A observação é de um rapazito de 6 anos a quem lemos Cândido e os outros, o livro vencedor do XI Prémio Internacional de Compostela para Álbuns ilustrados e editado pela Kalandraka.


As conversas são como as cerejas e apesar de o nosso interlocutor só contar como gente há meia dúzia de anos, acabámos falando de figuras geométricas, de cubos, da importância que eles  tiveram na obra de Picasso e de como ele, João, parecia estar a encontrar algumas semelhanças no livro que lhe mostrávamos. Cândido e os outros, com texto de Fran Pintadera e ilustrações de Christian Inaraja, acabou por se revelar um ponto de encontro. Um lugar de celebração da diversidade.


Cândido não é como os outros. Há dias em que se sente estranho, diferente, extravagante, esquisito, bizarro... Há alturas em que se sente incompreendido e outras em que não compreende nada... Ocasiões em que se sente pequeno, deslocado... Momentos  em que sente não estar à altura das circunstâncias, em que tenta passar despercebido... 


Cândido pode ser diferente, mas é sensível ao olhar e à opinião dos outros. Não gosta de ser o centro das atenções, mas também não gosta de parecer invisível. E adorava poder mostrar aquilo que sente.
Meio a medo, o João disse-nos que, às vezes, sentia algumas daquelas coisas.
 - Ah, sim? Nós também!- respondemos. Afinal, todos podemos ser como o Cândido. Ou como os outros, dependendo dos dias. 


O João tinha razão. Há páginas com elementos que nos lembram o cubismo. Há páginas onde a diversidade surge reflectida na paleta de cores. Outras que acompanham os estados de alma da personagem. As formas, os jogos de tamanhos e perspectivas,  a disposição de cada figura, de cada peça, ao longo do fundo branco das páginas caminham de mãos dadas com as frases curtas  e directas que falam de Cândido.  De todos nós. Do respeito pela diferença, essa temática tão universal quanto premente. 


João tornou-se amigo de Cândido. Enquanto esteve por cá, abraçou-o sempre, acabando por levá-lo para casa. Afinal, Cândido é  um bocadinho de todos nós. E único, como cada um dos seus leitores.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Hello Lighthouse. Livros que nos iluminam


Quando, no verão passado, nos cruzámos com  Hello Lighthouse, de Sophie Blackall, pensámos que só podia tratar-se da cereja no topo do bolo. Tínhamos acabado de percorrer a região da Nova Scotia, no Canadá, e visitado alguns dos mais de 160 faróis que por ali existem. Entre eles, Peggy’s Cove ou Peggy's Point, considerado o mais famoso e fotografado. O livro pareceu-nos uma bela homenagem a todos os que, de forma bem solitária, durante anos, dedicaram a vida a guardar e a assegurar o funcionamento daquelas "casas de luz".


Visitar um farol por dentro significa viajar no tempo e imaginar  a vida daqueles que  viveram confinados a espaços tão pequenos e isolados. Percebemos as rotinas dos seus guardiões, conhecemos os espaços onde passavam os dias e as noites, onde dividiam a vida com as famílias. Uma vida contada ao pormenor no diário de bordo de cada faroleiro.


Desta feita, tivemos direito a uma visita guiada por Sophie Blackall, magnificamente ilustrada e extraordinariamente bem documentada. As rotinas e os factos relatados revelam a dimensão da abnegação destes guardiões e das suas famílias, não deixando ninguém indiferente.
A chegada de um novo faroleiro, os arranjos e ajustes que faz, a solidão de um tempo que custa a passar, a chegada da mulher, o nascimento do filho, as estações do ano...são detalhes descritos primorosamente por Blackall, que nos faz viver cada um deles de forma singular.


Hello Lighthouse viajou do Canadá para Sintra em agosto, passando a ter lugar de destaque na Casa dos Hipopómatos. Em Janeiro, ficámos imensamente felizes por saber que tinha sido o livro vencedor da Caldecott Medal


Esta é a segunda vez que Blackall vence a Caldecott Medal, tendo, em 2016, arrecadado a distinção com Finding Winnie : The True Story of the World's Most Famous Bear, um livro que todos os fãs de Winnie deviam conhecer. Será que,  um destes dias,  atravessa o oceano?

sexta-feira, 10 de maio de 2019

A importância de se chamar Isol



Quando, em 2013, a argentina Marisol Misenta, conhecida no mundo da literatura por Isol, ganhou o prestigiado prémio Astrid Lincoln Memorial Award (ALMA),  o júri elogiou-lhe a capacidade de olhar o mundo com olhos de criança, de pôr a nu os absurdos que povoam o mundo dos adultos, de abordar os aspectos mais negros da existência com humor e leveza. 



Tais considerações continuam inquestionáveis para quem segue e admira o seu trabalho.  Em Isol há uma genial simplicidade e um humor feito de pequenas subtilezas. Em regra, ambos culminam num resultado genuinamente criativo e com  marca própria. Com um estilo inconfundível, os seus livros são, predominantemente,  narrativas visuais que nos levam de volta às ruelas e caminhos da infância, ao mesmo tempo que se revelam lugar de encontro para as crianças. 



A preferência pelos tons pastéis, os expressivos e inconfundíveis "bonecos", a candura das  personagens, as temáticas "existencialistas" onde pontifica o conflito, o binómio mãe-filho... são características indissociáveis do trabalho desta argentina que torna o livro num objecto único, onde miúdos e graúdos se divertem e, tantas vezes, se espelham.



Vida de Perros, publicado em 1997,  marcou a estreia no mundo dos livros ilustrados. Vinte anos volvidos, a sua obra encontra-se publicada em mais de 20 países. Autora do texto e da ilustração dos seus livros, Isol não recusa trabalhar em parceria, destacando-se a que vem mantendo com o poeta e escritor argentino Jorge Luján. A paixão e os percursos de ambos pela música (Isol é também compositora e cantora) são outros pontos em comum.



A recente chegada de um livro de Isol a Portugal, pela mão da editora Orfeu Negro, é motivo para festejarmos efusivamente. Esperando que Petit, o Monstro desbrave o caminho para todos os outros.  Tiner Un Patito És Útil,  Nocturno,  Abecedário...


Sendo o primeiro livro, entre nós, com texto e ilustrações de Isol, esta não é, porém, uma estreia absoluta. Mas, serão  muitos os que desconhecem que, em 2006, as Edições Asa publicaram  A História de Natal de Auggie Wren, com texto de Paul Auster e ilustrações de Isol. Que dupla! 
Curiosamente, este é um  trabalho  um pouco diferente do que nos habituámos a ver.  Isol recorre, aqui, ao uso reiterado da fotografia,  não impedindo que reconheçamos as típicas personagens e o seu cunho muito próprio. 



Petit, o Monstro, o livro que agora chega, é um bom exemplo de uma abordagem impregnada de humor, com as incongruências próprias do mundo dos adultos a dificultarem que o pequeno protagonista, um rapazito igual a tantos outros que conhecemos, se encontre a si mesmo, descubra a sua verdadeira identidade. 


Petit vive baralhado. Não sabe o que pensar porque, às vezes,  dizem-lhe que é um menino bom, mas outras há em que lhe dizem ser um menino mau. Quando brinca com o cão, quando inventa e conta histórias, dizem-lhe que é bom. Quando diz mentiras ou puxa os cabelos às meninas é mau... 


Os adultos são difíceis de entender. E não sabe o que responder à mãe quando ela lhe pergunta como um menino bom é capaz de fazer coisas tão más. Para agravar as coisas, quanto mais Petit se esforça para ser um menino bom, pior é o resultado. O rapazito chega mesmo a questionar-se se será algum tipo de monstro inclassificável
Como acaba tudo isto é o que vocês, leitores, irão descobrir. Com duas certezas:
1ª- Petit passa por longos períodos de reflexão, tentando compreender-se. 
2ª- Sendo uma história de Isol e conhecendo o papel que a figura da mãe assume na sua obra, o final não poderia ser outro. Deliciosamente hilariante.


Fica a sugestão: Isolem-se com os vossos monstrinhos, desculpem, com os vossos Petits  e divirtam-se! Também é para isso que os livros servem.