A chegada de um livro de Roberto Innocenti em véspera de férias significa, necessariamente, arranjar um espaço extra na mala. Clementine, recentemente publicado pela Kalandraka, é o nome de um grande navio com uma história de vida indissociável da do seu comandante.
A história pode ser fictícia, mas o realismo das ilustrações de Innocenti, a riqueza dos detalhes, a multiplicidade das pequenas coisas com que sempre nos brinda os sentidos a cada livro fazem-nos percorrer cada porto, a bordo do Clementine, ao longo de meio século de história.
A história é contada pelo comandante e o seu início coincide com o final do velho navio. Debaixo de uma violenta tempestade, assistimos ao naufrágio da embarcação, adivinhando-lhe um passado grandioso. Clementine pode estar, agora, no fundo do mar, onde provavelmente deveriam pertencer todos os navios, mas as memórias dos anos navegados estão a salvo. É a sua evocação, página a página, que nos permite conhecer a sua identidade e a do homem que o habitou e comandou ao longo de 5o anos.
A este, o mar navegava-lhe os sonhos desde sempre. Ainda rapaz, já trocava confidências, com quem viria a partilhar muito mais, sobre o dia em que se tornaria comandante. Assistiu de perto à construção do seu futuro navio, Clementine, e lembra-se bem do primeiro dia. Ao amanhecer, partiram de São Francisco.
Do Pacífico aos confins do continente africano, passando pelas costas árticas e asiáticas, foram muitos os portos que conheceram. Mais ou menos longínquas, as rotas percorridas abarcavam todos os cantos do mundo. Cartagena, Havana, Valência, Lisboa... Juntos, conheceram lugares e culturas diferentes, assistiram a revoluções, testemunharam submissões, fizeram amigos e encontraram adversários.
Viveram tempos calmos e tempos conturbados. Clementine era um navio de carga. Os porões eram frequentemente cheios com fruta fresca, especiarias e outras mercadorias das mais diversas paragens. Mas, quando rebentou a II Guerra Mundial, a Marinha dos Estados Unidos chamou-o para combater. Tanto na guerra com na paz, Clementine tomou conta de todos. Como fez, no momento em que se separaram, esperando que todos estivessem a salvo para se encaminhar para as profundezas do mar.
Hoje, as memórias do Comandante Sean são contadas em terra. Na companhia de quem também contou os dias longos e as noites intermináveis, esperando pacientemente pelo comandante, a sua família.
Fiel ao seu estilo, o ilustrador que, muitas vezes, se vê a si próprio como um diretor de cinema, preocupado com cada detalhe, volta às claras as influências do cinema e da banda desenhada. As sequências, os grandes planos, as vinhetas de formatos e tamanhos diversos, o jogo de luz... Tudo nos faz navegar os mares a bordo do Clementine, pôr o pé em terra a cada paragem, identificando bandeiras, decifrando siglas, perpetuando cada referência histórica.
A Casa, As Aventuras de Pinóquio, Uma Canção de Natal, A História de Erika e A Menina de Vermelho são alguns dos livros do autor publicados, entre nós, pela Kalandraka.
Há uns anos, numa entrevista à Revista Emília, que podem ler aqui, o autor que, em 2008, recebeu o prestigiado prémio Hans Christian Andersen pelo seu contributo para a Literatura Infantil, afirmou: Não me tornei pintor porque necessito da literatura que eu posso escrever ou interpretar a que outros escreveram. A intenção do álbum é ser um livro, um livro que tenha seu espaço. Fazê-lo é um processo criativo que me completa e que quando finalizo, me reconforta. É um trabalho solitário, em que se exercita muito a paciência, é uma aventura, um filme com final feliz. Ilustrar é contar histórias ao leitor.
Nós agradecemos e não perdemos uma.
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