terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Tempo do Gigante


Será o tempo deste gigante igual ao nosso? É a primeira interrogação que nos invade quando tocamos o livro de Carmen Chica e Manuel Marsol, recentemente editado pela Orfeu Negro.



Num tempo em que matamos os dias com o tanto com que os enchemos, em que as horas das crianças se atropelam com um sem-número de actividades que lhes inventam, este é um desafiante e poético convite ao dolce far niente. Um olhar de encantamento para as pequenas grandes coisas com que nos cruzamos na passagem do tempo.



Hoje não aconteceu nada. Nem hoje. E hoje também não. São as frases iniciais do monólogo que dá corpo ao curto texto do livro. Num ritmo pausado e algo nostálgico, as palavras repetitivas indiciam nada se passar por ali, ao mesmo tempo que sugerem a solidão da gigantesca criatura.


São as ilustrações que colocam o leitor perante uma realidade diferente. Ténue ou não, o confronto é evidente. A cada virar de página, damo-nos conta da passagem dos dias, da chegada da noite, da mudança das estações... A profusão e riqueza dos detalhes das imagens permitem-nos captar as alterações da paisagem em que se movimenta o protagonista e o seu próprio envelhecimento. 


Indicador privilegiado do decurso do tempo, é a árvore que carrega na cabeça e que só ao próprio parece passar despercebida. O surgimento ou a queda das folhas, das flores e dos frutos, ou o simples poisar de um pássaro falam por si.


Num encantador jogo de proporcionalidades, a verdadeira dimensão do nosso gigante é evidenciada pelo diminuto tamanho de tudo o que o cerca e que lhe cabe na palma da mão. É assim com a casa, que parece envelhecer ao mesmo ritmo do gigante, adquirindo uma simbologia própria, com as árvores ou até mesmo com o tempo.


Perguntado sobre a origem deste gigante que carrega uma árvore na cabeça, numa entrevista que podem ler aqui, o premiado Manuel Marsol respondeu: "Yo creo que ni yo mismo lo sé de dónde viene. A mí me interesa mucho todo lo que se mueve en el ámbito de la realidad y la fantasía, en este mundo en el que no estás completamente en un mundo fantástico sino que tienes también un pie en lo real, y de ahí ese escenario que es más o menos realista y un personaje que se sale fuera de lo normal."


O que talvez nos ajude a compreender um pouco melhor este gigante de aparência bonacheirona e ar sonhador, que, por vezes, se alheia do que vai acontecendo à sua volta. Outras, nem tanto. Tudo, num tempo que é só seu, como revela o inspirador e delicioso final do livro.
Por aqui, continuamos com um pé na realidade e outro na fantasia, com a certeza de que este é um livro a que voltaremos várias vezes, revisitando o gigante. 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

À espera de Isol

Chegam sem manual de instruções e nem sempre os entendemos à primeira... Há alturas em que se nos afiguram quebra-cabeças de difícil resolução. Falamos de bebés! 


Nascido da sua própria experiência da maternidade, o último livro da argentina Isol é uma espécie de guia, onde a autora disseca, com sublimes doses de humor, esse misterioso ser"Le bibou", edição francesa do título original "El menino" traduz, ao longo de sessenta páginas, uma deslumbrante e genuína criatividade.


A abordagem é feita a duas vozes, reflectindo as reações dos adultos e também as do pequeno e estranho ser que, de repente, surge nas nossas vidas, mudando-as radicalmente. A chegada do bebé, que desembarca nu e aos gritos, anunciando-se ao mundo, é o grande acontecimento.



As interrogações são muitas. As dúvidas também. De onde vem o bebé, será que ele sabia para onde vinha quando iniciou a sua viagem ou terá chegado a nossa casa por mero acaso?


A única certeza que temos é que o recém-chegado não se faz acompanhar de manual de instruções. Por sorte, vem equipado com vários apetrechos que, com o decurso dos dias, vamos aprendendo a conhecer e a manusear. Estes são, apenas, alguns exemplos: 


Uma poderosa sirene que alerta quando ele tem falta de alguma coisa. O seu funcionamento tanto pode indiciar que é necessário dar-lhe de comer, como adormecê-lo, tratar-lhe da higiene, ou brincar com ele e acarinhá-lo. Divertido mesmo, é tentar adivinhar a resposta certa cada vez que o alarme toca.


Uma válvula situada na parte inferior da cara, que utiliza para mamar, evidenciando fome várias vezes ao dia. Na parte superior, localizam-se duas janelas, com diversas utilidades e entre elas e a válvula, dois buracos que são túneis por onde entra e sai o ar. De cada lado da cabeça, situa-se uma protuberância em forma de caracol que, apesar de poderem confundir-se com duas alças são radares sônicos  de grande complexidade.


O imaginativo estudo anatómico deste ser totalmente articulado prolonga-se por várias páginas, numa brilhante e magistral composição gráfica.



Com requintada subtileza , Isol vai pondo em evidência a intensidade da presença do bebé, a mudança de hábitos que introduz na vida dos que o recebem, a forma como nos rendemos a estas criaturas, passando a vivenciar , com grande naturalidade, situações, no mínimo, bizarras.


De forma hilariante, a autora exemplifica como os pais fazem figas para que  a Boa Fada do Cocó, que visita habitualmente o bebé, não se esqueça de passar lá por casa... E relembra essa espécie de amnésia de que somos atacados e que nos impede de lembrar como era a vida antes da sua chegada. 


Sim, rendemo-nos ao menino de Isol! Esse ser misterioso, que traz um nó parecido com o de um balão, que reflecte as nossas emoções como um espelho, que fala uma língua totalmente diferente, que acredita poder ser invisível, e que um dia descobre que as pessoas grandes que o cercam também já foram bebés.


A aparente simplicidade dos bonecos de linhas direitas, desenhados no que parece ser papel kraft (totalmente reciclado e biodegradável), o imaginativo e deslumbrante jogo de linhas e cores, onde sobressai o traço a caneta, retratam de forma única a essência do pequeno ser. Um fabuloso livro para leitores dos 0 aos 100!


Vencedora do prémio ALMA em 2013, Isol conta já com mais de duas dezenas de livros editados. O fascínio que sentimos pela sua obra faz-nos acreditar que não demorará muito mais a chegar a Portugal.