Será o tempo deste gigante igual ao nosso? É a primeira interrogação que nos invade quando tocamos o livro de Carmen Chica e Manuel Marsol, recentemente editado pela Orfeu Negro.
Num tempo em que matamos os dias com o tanto com que os enchemos, em que as horas das crianças se atropelam com um sem-número de actividades que lhes inventam, este é um desafiante e poético convite ao dolce far niente. Um olhar de encantamento para as pequenas grandes coisas com que nos cruzamos na passagem do tempo.
Hoje não aconteceu nada. Nem hoje. E hoje também não. São as frases iniciais do monólogo que dá corpo ao curto texto do livro. Num ritmo pausado e algo nostálgico, as palavras repetitivas indiciam nada se passar por ali, ao mesmo tempo que sugerem a solidão da gigantesca criatura.
São as ilustrações que colocam o leitor perante uma realidade diferente. Ténue ou não, o confronto é evidente. A cada virar de página, damo-nos conta da passagem dos dias, da chegada da noite, da mudança das estações... A profusão e riqueza dos detalhes das imagens permitem-nos captar as alterações da paisagem em que se movimenta o protagonista e o seu próprio envelhecimento.
Indicador privilegiado do decurso do tempo, é a árvore que carrega na cabeça e que só ao próprio parece passar despercebida. O surgimento ou a queda das folhas, das flores e dos frutos, ou o simples poisar de um pássaro falam por si.
Num encantador jogo de proporcionalidades, a verdadeira dimensão do nosso gigante é evidenciada pelo diminuto tamanho de tudo o que o cerca e que lhe cabe na palma da mão. É assim com a casa, que parece envelhecer ao mesmo ritmo do gigante, adquirindo uma simbologia própria, com as árvores ou até mesmo com o tempo.
Perguntado sobre a origem deste gigante que carrega uma árvore na cabeça, numa entrevista que podem ler aqui, o premiado Manuel Marsol respondeu: "Yo creo que ni yo mismo lo sé de dónde viene. A mí me interesa mucho todo lo que se mueve en el ámbito de la realidad y la fantasía, en este mundo en el que no estás completamente en un mundo fantástico sino que tienes también un pie en lo real, y de ahí ese escenario que es más o menos realista y un personaje que se sale fuera de lo normal."
O que talvez nos ajude a compreender um pouco melhor este gigante de aparência bonacheirona e ar sonhador, que, por vezes, se alheia do que vai acontecendo à sua volta. Outras, nem tanto. Tudo, num tempo que é só seu, como revela o inspirador e delicioso final do livro.
Por aqui, continuamos com um pé na realidade e outro na fantasia, com a certeza de que este é um livro a que voltaremos várias vezes, revisitando o gigante.