A sugestão é óbvia: título e ilustração remetem-nos para uma outra história que bem conhecemos, A Bela Adormecida. Na busca da similitude, um rapaz conta-nos que a avó dorme, o dia todo, há mais de um mês. A sua mãe diz que ela é como a Bela Adormecida, à espera de um príncipe encantado que a desperte com um beijo.
Intuímos rapidamente que esta é uma abordagem metafórica e rica em subtilezas de temas tão duros como a morte ou a doença. As perdas são inevitáveis e a vida continuará para além delas. Mas a forma como encaramos essa inevitabilidade e a transmitimos às crianças nunca é simples e, raramente, apaziguadora. Talvez seja isso que nos toca tão de perto nesta história que o italiano Roberto Parmeggiani dedica à sua avó e à memória de uma relação próxima com muitos momentos partilhados. Um lugar onde a doença é um tempo de coisas estranhas e a morte é, afinal, um príncipe encantado.
Contada pelo neto, é uma história a três tempos. O momento presente, correspondente ao do sono em que a avó mergulhou, é antecedido de um outro em que a avó andava a fazer coisas um pouco estranhas.
Sabemos que o príncipe encantado está a chegar e que, inevitavelmente, a avó partirá com ele. Mas as partilhas e as cumplicidades, essas, permanecerão muito para além do sono em que mergulhou. As ilustrações de João Vaz de Carvalho relembram-no a cada dupla página. É uma avó alegre e divertida que atravessa a história em todos os momentos. O sorriso que exibe, enquanto dorme, parece ser, ele próprio, a invocação da memória de tudo o que fica.
À subtileza do texto, o ilustrador junta a das imagens. Quando o rapaz confessa sentir muito a falta da avó, todos parecemos tornar-nos cúmplices desta relação, reinventando as leituras, as histórias e o amor. Ou atravessando esse mar que percorre todo o quarto. Ou contemplando as semelhanças entre o cabelo enovelado da avó e o fumo das chaminés da casa e do barco.
Um livro que já abrimos muitas vezes. Talvez por saber que, um dia, o príncipe encantado das nossas avós também vai chegar.
(A avó adormecida, de Roberto Parmeggiani e João Vaz de Carvalho, ed. Kalandraka)
Em O Anjo da Guarda do Avô, de Jutta Bauer, editado pela Gatafunho, a temática da morte volta a estar presente. Também aqui, a história se alicerça na relação próxima entre um avô e o neto, que o visita no hospital.
Do mesmo modo, o leitor intui rapidamente a inevitabilidade da finitude da vida. O meu avô gostava de contar histórias. Contava sempre alguma coisa quando eu ia visitá-lo.
"Ninguém me segurava!" é o mote do avô para o relato da história da sua própria vida.
O humor é indissociável dos livros de Bauer e, ao contrário do que se poderia pensar, este não é excepção. No inicio da história, o avô conta: No meio da Praça, havia uma estátua grande, de um anjo. Eu nem sequer olhava para ela: tinha de me apressar, porque a minha mochila pesava muito".
Através das deliciosas e divertidas aguarelas de Bauer, que lembram o universo Sempé, constatamos que o anjo esteve presente em todas os momentos da vida do avô, protegendo-o dos vários perigos que surgiam no seu caminho.
Um caminho que não foi fácil e que podemos acompanhar desde as peripécias da infância à guerra, ao nazismo, à perda de amigos, à fome...
Apesar das dificuldades, o avô não parece guardar queixas da vida: Apaixonei-me... fui pai, construí uma casa... comprei um carro... e fui avô. Na verdade, a minha vida foi bela... direi mesmo que foi extraordinária. Tive muita sorte.
Nós, leitores, sabemos que ele nunca teve tempo para olhar para o anjo...
Este é o quarto livro de Jutta Bauer editado em Portugal, depois de A Rainha das Cores, Quando a Mãe Grita e Selma. A autora alemã comprova mais uma vez que os temas difíceis também podem ser tratados com humor e subtileza.
De forma tranquila, é o ciclo da vida que se completa. Mas não se pense que o anjo fica desocupado...
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