segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Gaspar, com os pés bem assentes na Lua




Gaspar, com os pés bem assentes na Lua | Rita Taborda Duarte e Sebastião Peixoto | Caminho


Isto é um MANIFESTO pela PALAVRODIVERSIDADE!  A convocatória é para dia 26, às 16H.


Dona de um humor único e de uma escrita irreverente, quer escreva para adultos ou para crianças, Rita Taborda Duarte há muito que conquistou lugar cativo no universo literário. Tornaram-se crónicos Os Piolhos do Miúdo e os Miúdos do Piolho. Fred e Maria andam sempre por aqui e seja qual for a altura do ano, Sabes, Maria, o Pai Natal não Existe estará sempre à mão. A Verdadeira História da Alice, Gastão vida de cão ou Animais e Animenos são apenas alguns exemplos dos seus livros que povoam as prateleiras da casa. De regresso ao mundo dos mais novos, a autora brinda-nos com mais um livro singular, uma espécie de manifesto pela Palavrodiversidade. 









































Quanto mais palavras habitarem a nossa língua, mais forte se tornará o nosso mundo, o nosso pensamento, as nossas histórias!”


Assinaríamos de cruz, se fosse caso disso. Vivemos tempos pandémicos, cada vez com menos imunidade à "febre de facilitismo" em nome de uma suposta "escrita para crianças". Infantilizar a escrita consubstancia um grosseiro retrocesso e uma afronta a todos os que, ao longo do tempo, se bateram para que ocupasse o lugar que é seu no panorama da literatura. 

Não há palavras difíceis. Há palavras com que os mais os novos não estão familiarizados. O crescimento faz-se por aprendizagem e a diversidade de palavras é a riqueza de uma língua. 

Rita não tem medo de usar palavras. Muitas. Esse é o caminho que propõe para tornar o mundo maior e mais brilhante

Há por aqui uma parafernália  de palavras e expressões que os mais novos nunca terão ouvido. Muitas delas só as encontrarão nos dicionários, as casas de todas as palavras, também eles em desuso. E que bom é pensar que um livro pode ter o efeito de pôr os mais novos a descobrir dezenas de palavras ainda que possam buscar apenas o significado de uma. Algo que os adultos que estão por perto deviam incentivar. 







































É no meio de todas estas palavras que encontramos Gaspar, um rapaz com uma tumultuosa relação com a Lua. Não confia nela, acha-a mentirosa, traiçoeira, manhosa, trapaceira, perigosa. Não tem dúvidas sobre os efeitos que ela exerce nas pessoas que passam muito tempo com a cabeça lá em cima... ou os pés, como é o seu caso. Só não entende porque é que os adultos à sua volta se deixam enganar por ela. Tanto em casa como na escola, é um incompreendido. Por uma razão ou por outra, todos acham que aquela obsessão com a lua tem de acabar. Mas isso são os adultos a falar e, 

"(...)os adultos, enfim... são uma espécie pouco expedita, quase nada inteligente: não veem uma coisa nem que ela esteja a brilhar diante dos olhos."









































As palavras são brilhantemente acompanhadas pelas ilustrações de Sebastião Peixoto. Com uma sóbria paleta, com tons predominantemente castanhos e azuis, Peixoto ilumina com mestria os caminhos e os atalhos de quem está cá em baixo, mas passa a vida na superfície lunar. Um exímio contributo para alcançar esse mundo maior e mais brilhante que todos almejamos.

























Saber como termina esta contenda é aquilo que vos propomos quando vos convocamos para o lançamento de Gaspar, com os pés bem assentes na Lua, com a presença dos autores, no próximo dia 26, às 16H, nos Hipopómatos na Lua. E não, não se trata de uma mera coincidência lunar. Antes um enorme privilégio partilhar a lua com o nosso Gaspar, de quem já somos fãs incondicionais.
Mais ou menos aluados, venham daí manifestar-se! A palavra de ordem é PALAVRODIVERSIDADE. Sempre!


sexta-feira, 18 de outubro de 2024

A Colher



 























A Colher | Sandra Siemens e Bea Lozano | Fábula


Há pequenos objectos que transportam consigo histórias enormes. Alguns atravessam gerações. Se falassem seriam capazes de contar histórias intermináveis de vida, de afectos, de perdas. É esse o caso da colher que empresta o nome a este livro. 
























Um inicio algo enigmático prende-nos às primeiras páginas do livro. Quando a jovem narradora põe a mesa, reservando para si aquela colher, a voz da mãe faz-se ouvir: "Essa colher não". Segue-se um pequeno elenco dos usos que não lhe podem ser dados, e é ele que leva o leitor a aferir a importância da colher.

- "Essa colher não é para comer sopa", acrescenta a mãe.  

- "Essa colher não é para cavar buracos", esclarece a avó, num momento em que a pequena se atreve a fazê-lo. 

- "Essa colher não é para tocar música", diz o pai, ainda que ela sinta que nenhuma outra colher consegue emitir aquele som.























Acompanhamos a jovem nas suas interrogações. Afinal, porque está a colher na gaveta, juntamente com todas as outras,  se não pode ser usada? E qual a sua proveniência? Um simples virar de página é suficiente para nos esclarecer. A colher fez parte de um conjunto dado como prenda de casamento à sua bisavó. Num tempo em que foi forçada a fugir da guerra, esta foi a  única coisa que conseguiu salvar e trazer com ela. Talvez por isso, para os mais velhos, mais importante do que o lugar fisico que lhe está reservado, seja  vê-la todos os dias. Uma forma de ter presente o lugar, os tempo e as pessoas para junto de quem ela os transporta. Mais do que uma gaveta, há por ali um baú de memórias.























As magníficas ilustrações de Lozano espraiam-se, algo minimalistas, pelo fundo branco das páginas. Com uma paleta em tons amenos, somos levados a sentir-nos em casa, admirando a partilha daquele objecto tão emblemático para quem ali vive.
























A colher foi mudando de dona, mas nunca abandonou a família. Da bisavó passou para a avó e é agora da mãe. Um dia será pertença da nossa jovem.  Mas ela ainda não sabe se quer ser dona de uma colher que não pode ser usada para comer sopa, ou para cavar buracos, ou para tocar música. Não tem dúvidas que, em tempos,  a sua bisavó fez tudo isso. Tal como ela deixará , um dia, a sua filha fazer. Será?
























Quanto a nós, leitores, não conseguimos deixar de pensar nas colheres únicas que todos aqueles que, hoje, deixam a guerra para trás transportam consigo. Ou não.


terça-feira, 15 de outubro de 2024

Um e Sete

 





Um e Sete | Gianni Rodari e Beatrice Alemagna | Kalandraka


Quando Gianni Rodari escreveu este conto, que integra os Contos ao Telefone, talvez não suspeitasse que volvidos mais de 60 anos, ele fosse tão adequado aos tempos negros que vivemos e passível de tocar tão intensamente leitores de todas as idades. Magistralmente ilustrado por Beatrice Alemagna, esta ode à paz e à diversidade transforma-se num relato de esperança e amor que percorre a infância até à idade adulta. 



É a história de um rapaz que era sete meninos num só. Viviam em lugares distintos (grandes cidades capitais do mundo), falavam línguas diversas, mas quando riam, faziam-no na mesma língua. Sete meninos diferentes, afinal um só. Os pais têm profissões distintas, mas os meninos têm hábitos iguais. Todos sabem ler e  escrever, andar de bicicleta sem mãos, brincar, ser criança... 
Todos diferentes, todos iguais.



























Uma história tocante, de uma extrema sensibilidade que percorre  texto e ilustração. Mais do que actual, necessária. Este é um daqueles livros que sempre nos acompanha. Pena que os homens que, entretanto foram crescendo em tamanho, não tenham crescido em cabeça e coração e não o queiram, também eles, por companhia. 
















Era uma vez um rapaz que era sete meninos num só. Muito mais o que os une do que aquilo que os separa, quando crescem, no seu mundo, não há lugar para a guerra. Afinal são um só. Gostamos deste mundo e, tal como escrevemos aqui em 2017, há muito que fizemos a nossa reserva. 

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Gato Comum




Gato Comum | Joana Estrela | Planeta Tangerina


Tudo por aqui aparenta ser comum. O gato, a família, a casa, as rotinas. O que nada tem de comum é a mestria com que Joana Estrela, alicerçada na simplicidade das coisas de todos os dias,  constrói uma história intensa e tocante, levando o leitor a apropriar-se desta ou daquela vivência. Quem tem animais domésticos conhece a inevitabilidade da dor quando chega o momento de nos deixarem. Nesta história, a longevidade do gato faz adivinhar a proximidade do fim.



 



Manel, o gato da casa, tem a mesma idade de Cristina, a adolescente de 17 anos, filha única da família. É ela que abre as portas da casa para contar o que o leitor cedo percebe serem os últimos dias de vida do gato. O relato da rapariga é feito de memórias, de cumplicidades, de hábitos e rotinas, do muito que o Manel deu e recebeu, das suas manias, dos seus dias. Enquanto a morte não chega há por aqui a celebração de toda uma vida.







































A história do Manel é também a história das pessoas com quem partilha a vida, Cristina e os pais. O leitor conhece um pouco de cada um. Do que os une, do que os separa. O livro chegará ao fim e os dias do Manel também. A terrível frase que nunca queremos ouvir está mesmo atrás da porta: O Manel já não tem qualidade de vida. 
São dias amargos e tristes. A decisão tem de ser tomada, mas não é consensual nem constante. Porque muito dela se toma com o coração.







































"É sábado de manhã. O gato ainda está vivo. Mas também ainda está a morrer." 

Há muito para reflectir enquanto nos demoramos nesta casa. Dor, luto, morte, eutanásia. Retalhos de uma vida que se celebra, retratos da adolescência, o amor incondicional pelos animais que adotamos, as indecisões e a coragem sempre necessárias nos momentos difíceis, o fortalecimento da família... Há por aqui muitas histórias dentro da história.
O livro integra a coleção Dois Passos e Um Salto, onde a autora já assinou "Aqui é um Bom Lugar"(a meias com Ana Pessoa) e "Pardalita". Num tempo em que continuamos a ouvir recorrentemente que as nossas crianças se perdem para a leitura à medida que vão "adolescendo", estes são preciosos incentivos a que, seguramente, não ficarão indiferentes.







































Neste regresso de Estrela à BD, um reino  que parece seu por direito próprio, aplausos para este excepcional gato comum.