Intenso, comovente, ambíguo e maravilhosamente desafiador. É assim Ser Pequeno na Cidade, do canadiano Sydney Smith, trazido para Portugal pela mão da Fábula. É a estreia de Smith como autor de texto e ilustração. Mas, enquanto ilustrador, o seu trabalho sempre deslumbrou quem o segue de perto. Os prémios recolhidos falam por si. Por cá, conhecemos Flores Mágicas, editado pela Livros Horizonte. Fãs incondicionais, há muito que aguardávamos festejar uma nova visita.
Ser Pequeno na Cidade é uma narrativa quase cinematográfica que nos prende logo na capa. O olhar enigmático de uma criança para lá do vidro de uma janela de autocarro, os prédios em fundo, as luzes vermelhas dos faróis dos carros, os pequenos flocos de neve e a aparente obviedade do título chamam o leitor para o livro mesmo antes de o abrir. O estilo de Smith é indissociável do seu gosto pelas vinhetas, pelos quadros em que distende sequencialmente as suas histórias. Aqui e além, as ilustrações surgem-nos como manchas, relembrando-nos algumas obras impressionistas, sem nunca deixar de nos fornecer um retrato imponente e bem real da cidade. Os candeeiros, as passadeiras, os letreiros, os cabos eléctricos, as sombras... são múltiplos e desconcertantes os detalhes que o autor nos oferece. Um inicio silencioso e nostálgico, através de uma dupla página de observação da vida na cidade, deixa antever algum mistério. A acção parece começar com o gesto da criança ao levantar-se para sinalizar que sairá na paragem seguinte.
A saída do autocarro é feita para uma dupla página onde a cidade se agiganta. Pessoas, prédios de grandes dimensões, carros, gruas, semáforos... compõem o cenário , algo intimidatório, onde chega a pequena criança carregando a sua mochila. Pela primeira vez, surgem algumas palavras. Ao leitor, soam reconfortantes: "Eu sei como é ser pequeno na cidade". Percorremos o caminho com a criança. Não lhe conhecemos nome, não sabemos se é rapaz ou rapariga. Devidamente equipada para o dia de inverno que enfrenta, apreendemos-lhe apenas a pequena estatura e o olhar profundo. Como leitores, a curiosidade é grande, as interrogações são muitas. De uma forma ou de outra, já todos vivenciamos esta experiência e sabemos como pode ser difícil ser pequeno na cidade. A solidão, o medo e o perigo parecem continuar a atravessar o livro.
A neve aumenta de intensidade, o entardecer avizinha-se. Só a voz o continua a acompanhar, redobrando agora os conselhos. Os becos podem ser bons atalhos. Mas não vás por este. É demasiado escuro. Neste quintal, três cães grandes... se eu fosse a ti... não passava nem perto. Há muitos sítios onde te podes esconder
A esta altura, é legítimo ao leitor pensar que esta foi a forma encontrada pelo autor para que a criança não enfrentasse tudo sozinha, para que a travessia não fosse tão dura. Há um narrador que a acompanha, que a aconselha, que lhe diz por onde deve ou não deve ir, com quem pode e com quem não deve falar, que lhe indica os lugares mais seguros.
Apesar do barulho da cidade, um intenso silêncio parece envolver a criança e os leitores numa mesma teia. Paramos muitas vezes. Vislumbramos os perigos. Sentimo-nos igualmente inseguros. Tememos por aquela criança. A meio, paramos, confusos. Por que razão uma criança pedirá um peixe ou se esconderá no cimo de uma nogueira? Por que razão dormirá uma soneca junto ao vapor quente de uma lavandaria ou se aninhará no colo de alguém? Mas não queremos perder qualquer passo, qualquer gesto. Depois, chega o momento. Há uma espécie de magia na viragem da história. Não na história de Smith, mas na historia que o leitor foi construindo na sua cabeça. É aqui que percebemos que os conselhos não são para a criança, que não há o tal narrador que procurávamos desde o começo, que provavelmente vamos ter de percorrer este caminho uma e outra vez! Porque muita coisa nos terá escapado. Porque não procurámos o suficiente, não estávamos avisados. Este não é só um caminho feito de medos e inseguranças. É também um caminho feito de perda. Mas isso só Smith sabia. O que ele fez foi desafiar os leitores para um jogo de ambiguidade e subtileza. Nós aceitámos. Agora é a vossa vez!
Com uma viragem tão inesperada quanto surpreendente e um final em aberto, este é um livro brilhantemente construído. Com alguns apontamentos a lembrar uma das confessas inspirações do autor, Edward Gorey. Mas também aqui e além, invocando esse outro grande livro Um Dia de Neve, do autor que dá o nome ao prémio com que foi galardoado, Ezra Jack Keats. Pode não nevar nas nossas cidades, mas as ruas são igualmente feitas de perigos e incertezas. Esta é uma caminhada que pequenos e grandes não podem perder.