sexta-feira, 28 de março de 2025

A Maré

 




A Maré | Clare Helen Welsh e Ashling Lindsay | Nuvem de Letras


A praia é o cenário escolhido para a pequena narradora nos falar do avô, o rei dos castelos na areia e das conchas. As revelações surgem, logo no início do livro, contadas com a naturalidade de uma criança.   Às vezes, o avô esquece-se de algumas coisas.























A neta manifesta as suas preocupações pelas coisas esquisitas que, por vezes, o avô faz. Há momentos em que fica baralhado, se esquece das coisas, se confunde. Os diálogos entre a mãe, sempre presente, e a pequena narradora evidenciam a partilha dessas preocupações e o amor que têm pelo avô. Apesar das preocupações manifestadas, o avô conta com toda a sua compreensão. Ela sabe como é difícil esquecer as coisas. Não há muito tempo que necessitou da ajuda da professora por se ter esquecido de como se apertam os sapatos. 























Por gostar muito muito do avô, as preocupações aumentam  sempre que o vê fazer algumas coisas bizarras, como enterrar as sanduíches na areia. Mas não esquece que também ela, em tempos, enterrou o seu urso polar  e necessitou da ajuda da mãe para o encontrar. Entende o avô, sabe como deve ser difícil  não nos lembrarmos das coisas. A mãe relembra-lhe amiúde o quanto o avô a ama. Ela sabe disso, mas assusta-a a ideia de o avô se esquecer dela. A ideia é tão assustadora que não perde a oportunidade de lhe dar um beijo gigante.


A comparação que sempre estabelece entre as acções mais estranhas do avô e algumas situações que ela própria já vivenciou, evidenciam ao leitor que o amor que sente pelo avô em nada se altera. A preocupação reveste-se de compreensão e de uma atenção cuidada. De mãos dadas, observam a maré a subir.





















A mãe diz que as memórias do avô são como a maré. Às vezes,  estão mesmo aqui ao pé e cheias de vida. Outras, estão muito, muito longe e adormecidas. Percebemos a escolha da metáfora utilizada entre a maré e a memória do avô. Afinal, a ida à praia não é ao acaso.























As magníficas ilustrações de Lindsay vão exibindo as cumplicidades, os abraços, o afecto, o olhar atento da mãe... com a mesma naturalidade com que exibem o esplendor da praia e a diversidade étnica que rodeia as três personagens. Atentas aos pequenos detalhes, mostram um avô que, ainda que por vezes se esqueça das coisas, continua a fazer castelos na areia com a neta, a trazê-la às cavalitas, a dar-lhe a mão para, juntos, verem a maré subir, a comer gelados e a regressar ao aconchego da casa e da família. Uma abordagem singular e bela de um tema nada fácil para os mais pequenos.


quarta-feira, 19 de março de 2025

As Mãos Do Meu Pai


 





















As Mãos Do Meu Pai | Deok Kyu Choi | Orfeu Negro


Um invólucro onde estão desenhadas as mãos grandes e firmes do pai cobre uma boa parte da capa. Só quando o retiramos nos é revelado o que elas ocultam: uma criança. A imagem aliada ao título indicia uma ode ao amor entre pai e filho. Mas o que nos aguarda é muito mais. É o ciclo da vida que aqui se exibe e se desdobra nas suas múltiplas fases. O passado e o presente, a infância e a velhice, o nascimento e a morte. Há toda uma celebração do amor sem limites, dos cuidados de que ele se reveste, de retribuição. Uma ligação forte e única entre pai e filho, consolidada pelo tempo e pelo amor .




 












De forma delicada, a infância e a velhice dão as mãos. O passado e o presente mostram-se ao leitor na separação das páginas duplas. À esquerda, as imagens surgem em forma de círculo, como recordações saídas da objectiva de uma máquina fotográfica. São imagens da infância, dos cuidados e do amor dados por um pai presente em todos os momentos do crescimento. Um pai que acaricia, que muda as fraldas, que aperta os sapatos, que corta as unhas, que dá banho... 


Na página da direita, o presente revela-se na retribuição dos gestos, em tudo semelhantes, do filho que, agora adulto, cuida do pai a quem o decurso do tempo trouxe a fragilidade e o cansaço próprios da idade. A similitude dos gestos, do carinho nos cuidados dispensados por um ao outro são evidentes. É um filho cuidador quem, hoje, aperta os sapatos, dá banho, corta as unhas... ao pai.



O ciclo da vida exibe-se nas páginas do livro, começando nas magníficas guardas. Há uma sequência de três páginas duplas onde o rapaz vai crescendo e se apressa a chegar ao presente. Até ao pai que precisa de si. Há todo um realismo em que nos revemos. Porque esta é uma história onde não se relatam apenas os momentos lúdicos passados entre pai e filho, mas também as coisas de todos os dias. Até as mais íntimas, como tomar banho ou cortar as unhas.
















Este é um álbum sem palavras onde não fica nada por dizer. Os olhares e as cumplicidades que atravessam a vida dos dois são observados pelo leitor. Paternidade e filiação entrelaçam-se a quatro mãos. 















Vencedor do prémio Bologna Ragazzi 2022 na categoria Menção Especial Não-Ficção, este é um livro que, com grande sensibilidade e delicadeza, lembra a leitores de todas as idades a reciprocidade no amor. Feliz Dia do Pai, hoje e todos os dias!


quarta-feira, 12 de março de 2025

O TEMPO DO CÃO


 










O Tempo do Cão | António Jorge Gonçalves e Ondjaki | Caminho


Esta é a história de uma amizade provável entre um guerrilheiro e um cão. Nascida de um  encontro improvável entre Che Guevara e um animal perdido nos destroços de um palco que é o Congo. Para o leitor, é um mergulho num lago de afectos, cumplicidades, saudades e silêncios em tempo de guerra.























O formato pequeno e delicado agarra-se-nos às mãos, lembrando um daqueles objetos onde se guardam as pequenas grandes coisas da vida. A letra desenhada maiúscula ou minúscula, consoante a história é contada pelo homem ou pelo cão, funciona como avisador de que esta é uma história a duas vozes. As páginas azuis onde se espraiam os desenhos a  branco vivificam a partilha dos momentos, as pausas dos combatentes, a vida que sobra da guerrilha. Há por aqui todo um bailado entre as palavras que se distendem pelas páginas e os desenhos que as perpetuam. 




Através do cão, conhecemos um pouco mais dos guerrilheiros, esses fingidores que fingem não ter fome, não ter medo, nem saudades da família. Pelo guerrilheiro, ficamos a saber como o cão de olhos muito abertos se lhe atravessou no coração. Como a presença do silencioso companheiro pode aliviar o peso da arma e de tudo o que lhe falta em tempo de combate.



Ondjaki ter-se-à inspirado numa informação sobre um grupo de guerrilheiros que combateu no Congo e que, efectivamente, se terá cruzado com um cão. Che Guevara também passou por lá. O que, inicialmente, pensámos ser um tributo a Che, surge-nos agora como a celebração de todos  aqueles a quem a guerra não rouba o coração. Que continuam a saber amar, a criar laços, a derramar lágrimas na hora da despedida. Mesmo que seja por um animal.





A separação entre o cão do Che e o Che do cão afigura-se iminente assim que abrimos o livro. Há momentos em que nos queremos perder na narrativa. Para não termos de avançar, para não chegarmos ao fim. Comovemo-nos. Mas consolamo-nos na água e no leite que não havia partilhados com o cão. Nos silêncios vagarosos e nos olhares cúmplices divididos com o guerrilheiro. Revemo-nos no tempo do cão, impregnado pelo cheiro dos charutos, pelos pensamentos distantes, pela atenção e carícias dispensadas, pela presença do companheiro. Nos afectos, na amizade, na vida e no seu fim mais que provável.






Um livro onde há um abraço poético entre as palavras de Ondjaki, os incríveis desenhos de António Jorge Gonçalves e o design que também assina. Há como que um magnetismo que nos apanha desprevenidos, começando logo nos olhos que trespassam a capa e a alma do leitor. Num mundo de tantas guerras, vale a pena viver nas margens deste livro durante algum tempo. Olhando um pouco mais além, ainda vemos um cão que adormece com saudades de um guerrilheiro. 


Domingo, dia 16, às 16H, recebemos os autores para uma sessão de lançamento do livro. Esperamos por vocês.