sexta-feira, 24 de julho de 2020

Desvio. Uma boleia para o verão


A dupla é de peso e conta já com 4 livros na coleção Dois Passos e Um Salto da editora Planeta Tangerina, destinada a adolescentes e leitores mais crescidos. Ana Pessoa é, actualmente, um  nome incontornável na escrita sobre e para a adolescência. Bernardo P. Carvalho dispensa apresentações e do seu trabalho conjunto nasceram já alguns livros marcantes no panorama da literatura juvenil: Supergigante, O Caderno Vermelho da Rapariga Karateka e Mary John.  Desvio volta a juntar os dois. Desta feita, numa novela gráfica que promete marcar o verão de todos os que aceitem fazer a viagem. 


Porque a vida é feita de coincidências, ainda que tenha nascido antes da pandemia, a história surge sob o signo do confinamento, a que tantas vezes os adolescentes se remetem. Miguel é um jovem lisboeta de 18 anos, sozinho em casa. A opção foi sua. Os pais foram de férias e ele não quis ir. Os amigos estão num qualquer festival de verão, que ele recusou. A namorada pediu-lhe um tempo, uma pausa. E Miguel decidiu fazer uma pausa de tudo neste mês de agosto. Como se o calor do verão fosse o ideal para congelar medos, inseguranças, frustrações, incertezas. Ou, talvez porque, aos 18 anos, os silêncios e a solidão sejam os melhores companheiros para visitar os conflitos existenciais que nos assolam, para contabilizar dúvidas enquanto nos tentamos descobrir e conhecer. 


Com a casa e a vida só para si, o jovem inicia uma viagem interior em que percorre, não só as tormentas geradoras da sua crise de identidade, como também alguns temas estruturantes que atravessam esta fase da vida. Miguel sabe que não sabe o que quer, que os outros esperam sempre qualquer coisa dele que ignora o que seja, que os dias são quase sempre vazios, que todas as coisas à sua volta são suficientemente desinteressantes... ainda que algumas o mantenham à tona. As aulas de código são uma seca, mas necessárias. Regar as flores da mãe, pedido expresso e reiterado, é tarefa a que não pode esquivar-se. Fora delas, distende-se a si e ao seu desinteresse pelos cantos da casa, rodeando-se rotineiramente da televisão, dos jogos de computador e do telemóvel, nem sempre ligado. Só os cigarros parecem ter algum efeito terapêutico, assemelhando-se a pequenas pausas dentro da grande pausa. Miguel está perdido, em busca de si mesmo, do mesmo modo que continua a perder-se nalgumas ruas da sua cidade, no meio das multidões de turistas.


Pelo meio, devassamos-lhe a intimidade. Ficamos a conhecer os problemas de relacionamento com o pai, apesar das semelhanças, a fragilidade e a dureza do posicionamento da mãe entre ambos, a falta de proximidade, a ligação com a tia pouco resolvida com a vida, a precariedade e a inconstância do namoro... Ficamos a conhecer um adolescente igual a tantos outros, avesso a expressar sentimentos através de beijos e abraços, mas  nem por isso menos sensível, continuando a sentir a falta de Rúben, o cão que morreu, sempre que chega a casa. Um rapaz que gosta de almôndegas, arroz com batata frita e sopa de letras.


Uma novela gráfica onde texto e ilustrações se respeitam mutuamente. Onde não há qualquer desvio à qualidade e inteligência a que escritora e ilustrador já nos habituaram. Onde há tempo e lugar para os silêncios e pausas do Miguel. Onde as cores quentes de agosto nos fazem percorrer uma vida ou várias, uma casa e uma cidade com a intensidade e a mestria só ao alcance de alguns. Cá por casa, encantou toda a gente, tendo arrancado do adolescente que o leu de um só fôlego, o sentido comentário: "muito bem esgalhado"... Com as regras de trânsito estudadas ou não, o desvio é para fazer. Porque este é o verão de todos os desvios.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

O Protesto


Era uma vez... o dia em que o mundo animal disse basta! Provando que nem eles se medem aos palmos, o movimento terá sido encabeçado por um pequeno pássaro que deixou de cantar. Rapidamente alastrou sob a forma de um pacto de silêncio entre todos os animais.


Todos os outros pássaros deixaram de cantar, 
nunca mais se ouviram os gatos miar, 
os cães deixaram de ladrar, 
os insectos não zumbiam, 
os lobos deixaram de uivar,
as galinhas emudeceram não se ouvindo um único cacarejar...


Pelas proporções tomadas, o protesto virou manchete de jornais e foi objeto de notícia em todos os meios de comunicação. Houve mesmo quem tomasse medidas mais radicais. 
As vacas recusaram-se a dar leite, 
os elefantes deixaram de actuar nos circos, 
os gorilas, no zoo,  não se deixavam fotografar...
E pasme-se, as crianças pararam de brincar! E algumas recusaram-se mesmo a ir à escola.


Protesto, recentemente editado pela Orfeu Negro, marca a estreia de Eduarda Lima no álbum ilustrado. As ilustrações a três tons levam-nos a percorrer de forma intensa cada habitat, incutindo no leitor a vontade de participar ativamente no protesto, solidarizando-se com todos os animais. Com um magnífico e surpreendente final, a história revela-se um apelo  certeiro à tomada de consciência de cada um em defesa da natureza. Apaixonámo-nos pelo livro e, depois desta estreia auspiciosa, até seríamos capazes de iniciar um protesto pelo próximo. 

sábado, 11 de julho de 2020

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Era Duas Vezes o Barão Lamberto.




“O homem cujo nome é pronunciado permanece vivo”.  

No ano do centenário do nascimento de Gianni Rodari, esta podia bem ser uma referência ao autor, tantas são as vezes que lhe pronunciamos o nome. O Pai da Gramática da Fantasia permanece vivo através do extraordinário legado que nos deixou.
A frase é sua e revela-se o mote para um dos mais magníficos e hilariantes contos que escreveu, já com estatuto de clássico na literatura infantojuvenil. Era Duas Vezes o Barão Lamberto, editado recentemente pela Kalandraka, chega em formato de luxo, com ilustrações do conceituado Javier Zabala (de quem falámos aqui e aqui). Antes, o espanhol já tinha deixado a sua assinatura no delicioso conto de Rodari, El Hombre Que Compró La Ciudad de Estocolmo.


Rodari foi, na sua essência, um brincador das palavras, um descobridor dos seus múltiplos sentidos e um criativo na arte de as pôr ao serviço das crianças. Grande pedagogo, revelou-se, também, exímio nos método de contagiar os adultos. Com ele aprendemos que as palavras são, afinal, brinquedos. É com estes brinquedos que podemos exercitar o maravilhoso poder de inventar.
Em Era Duas Vezes o Barão Lamberto, esse poder não parece conhecer limites. O Barão é um homem muito velho, muito rico e detentor, nada mais nada menos, de 24 doenças. Arteriosclerose, artrite, artrose, asma, bronquite crónica... De a a z, Lamberto padece de tudo um pouco. É o que dá ter a mania das grandezas. Anselmo, o velho mordomo com quem partilha a casa e a vida, anota tudo. Os remédios, as horas, o que pode comer, o que pode beber... Para além das 24 doenças, Lamberto tem também 24 bancos e outras tantas casas espalhadas pelo mundo. Quando chega o Inverno, os velhos ossos do Barão têm por hábito ir apanhar o sol do Egipto. É lá que se dá o encontro com o curandeiro árabe que lhes fornece a cura para todos os males do velho. “O homem cujo nome é pronunciado permanece vivo”.  




O segredo guarda-se no sótão, onde passam a viver umas quantas criaturas contratadas exclusivamente para invocar, dia e noite, o santo nome: - Lamberto, Lamberto, Lamberto...
O humor e a criatividade que atravessam a obra rodariana são aqui uma constante, a que se juntam a crítica social, a fina ironia e uma boa dose de sarcasmo. Com a inteligência a que nos habituou, a brincadeira percorre temas tão variados e sérios como o materialismo, a ganância ou os direitos dos trabalhadores.
Pelo meio, há um desfile de personagens que, por uma razão ou por outra, nos são familiares. É o caso de Otávio, o sobrinho protótipo do escroque que anseia a morte do tio  para herdar a grande fortuna ou dos 24 bandidos, todos de nome Lamberto, que exigem 24 milhões da fortuna do velho barão.



Ao longo da história, Lamberto rejuvenesce, morre, ressuscita e termina criança. Mas, reparem caros leitores, que, se o fim escolhido não for do vosso agrado, o autor vos dá total liberdade para inventar outro. Afinal, falamos de Gianni Rodari