A Colher | Sandra Siemens e Bea Lozano | Fábula
Há pequenos objectos que transportam consigo histórias enormes. Alguns atravessam gerações. Se falassem seriam capazes de contar histórias intermináveis de vida, de afectos, de perdas. É esse o caso da colher que empresta o nome a este livro.
Um inicio algo enigmático prende-nos às primeiras páginas do livro. Quando a jovem narradora põe a mesa, reservando para si aquela colher, a voz da mãe faz-se ouvir: "Essa colher não". Segue-se um pequeno elenco dos usos que não lhe podem ser dados, e é ele que leva o leitor a aferir a importância da colher.
- "Essa colher não é para comer sopa", acrescenta a mãe.
- "Essa colher não é para cavar buracos", esclarece a avó, num momento em que a pequena se atreve a fazê-lo.
- "Essa colher não é para tocar música", diz o pai, ainda que ela sinta que nenhuma outra colher consegue emitir aquele som.
Acompanhamos a jovem nas suas interrogações. Afinal, porque está a colher na gaveta, juntamente com todas as outras, se não pode ser usada? E qual a sua proveniência? Um simples virar de página é suficiente para nos esclarecer. A colher fez parte de um conjunto dado como prenda de casamento à sua bisavó. Num tempo em que foi forçada a fugir da guerra, esta foi a única coisa que conseguiu salvar e trazer com ela. Talvez por isso, para os mais velhos, mais importante do que o lugar fisico que lhe está reservado, seja vê-la todos os dias. Uma forma de ter presente o lugar, os tempo e as pessoas para junto de quem ela os transporta. Mais do que uma gaveta, há por ali um baú de memórias.
As magníficas ilustrações de Lozano espraiam-se, algo minimalistas, pelo fundo branco das páginas. Com uma paleta em tons amenos, somos levados a sentir-nos em casa, admirando a partilha daquele objecto tão emblemático para quem ali vive.
A colher foi mudando de dona, mas nunca abandonou a família. Da bisavó passou para a avó e é agora da mãe. Um dia será pertença da nossa jovem. Mas ela ainda não sabe se quer ser dona de uma colher que não pode ser usada para comer sopa, ou para cavar buracos, ou para tocar música. Não tem dúvidas que, em tempos, a sua bisavó fez tudo isso. Tal como ela deixará , um dia, a sua filha fazer. Será?
Quanto a nós, leitores, não conseguimos deixar de pensar nas colheres únicas que todos aqueles que, hoje, deixam a guerra para trás transportam consigo. Ou não.
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