sexta-feira, 16 de outubro de 2020

A Alma Perdida. Um Lugar Onde Queremos Morar


Olga Tokarczuk, Prémio Nobel da Literatura 2019, dispensa apresentações. Joanna Concejo,  autora e ilustradora,  é dona de uma obra apaixonante. Do encontro entre as duas autoras polacas nasceu  A Alma Perdida, um livro sublime.  

"Se alguém pudesse olhar para nós lá do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas que correm apressadas, transpiradas e muito cansadas, e que atrás delas correm, atrasadas, as suas almas perdidas..."


  
A concisão do texto de Tokarczuk e a sua relação intrínseca com as maravilhosas imagens de Concejo são os pilares deste álbum ilustrado, uma delicada e singular reflexão sobre quem somos e a forma como vivemos. 
Concejo é um nome grande da ilustração, já com lugar reservado na história da LIJ. Com uma obra com algumas dezenas de livros, a autora polaca que gosta de desenhar a lápis e em papéis velhos, é responsável por nos guiar ao longo de algumas travessias que não se esquecem. Entre nós, são muitos os que se lembram de Fumo, um álbum em co-autoria com Antón Fortes, e cuja acção decorre num campo de concentração nazi.



As palavras de Tokarczuk contam que era uma vez um homem que trabalhava muito e depressa e que, há bastante tempo, deixara a sua alma algures longe de si. Sem alma, vivia até muito bem - dormia, comia, trabalhava, conduzia o automóvel e até jogava ténis. Mas, às vezes, tinha uma sensação estranha. 
Um dia, depois de sentir dificuldade em respirar, o homem deixou de saber quem era. Só mesmo o passaporte lhe dizia o nome. Depois de consultar uma sábia e velha médica, acabaria por tomar  a decisão que lhe mudou a vida. 
Encontrou uma casinha nos arredores da cidade, e, todos os dias, aí se sentava numa cadeira, à espera.

Numa viagem sem tempo, visitamos lugares do passado, refúgios de memórias, ilhas de solidão... A paz  e a nostalgia do tempo que a vida pode ter respiram-se dentro e fora do livro. Estes são lugares onde queremos morar. Onde desejamos ficar. Concejo concebeu-os com extrema beleza.
As ilustrações proporcionam ao leitor uma visita única, em que nada foi deixado ao acaso. A passagem dos dias, sem pressa ou correrias, é revelada por pequenos detalhes como o crescimento da barba e do cabelo. A observação do que nos rodeia, a envolvência com a natureza ou os animais que se passeiam pelas páginas como parte integrante do cenário chegam-nos através de deliciosos e subtis detalhes. Por aqui, a busca da identidade faz-se com a calma e a paciência que a vida merece. 


Estruturada de forma brilhante, a história faz-se a dois tempos e a dois tons. A lembrar, a espaços, um registo fotográfico esbatido pelo tempo,  o uso do papel quadriculado e a paleta de cores cumprem uma missão específica. Porque quando nos perdemos, o mundo todo nos parece a preto e branco, as cores quentes só vão surgindo na medida da proximidade da presença da alma aguardada. À medida que o encontro do homem e da sua alma (aparição de criança) se avizinha, a cor vai eclodindo fazendo antever o encontro consigo próprio.


Mais do que um livro filosófico, A Alma Perdida é um livro para leitores de todas as idades. O seu nascimento, em 2017,  não podia antever o momento que hoje vivemos. Mas a paz e a beleza que traz consigo não podiam chegar em momento mais oportuno. Não deixem de o visitar e demorem-se por lá um bom tempo. 
Jan, assim se chama o homem, é hoje dono de um jardim invejável de que gostaríamos de desfrutar todos os dias. As belas flores que ali habitam cresceram dos relógios que ele ali enterrou. Andamos tentados a experimentar. 

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