quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Ícaro



O título e a capa dizem-nos que a história já começou, mesmo antes de abrir o livro. O nome escolhido, o posicionamento dos pássaros na montra, coarctados na sua liberdade, e o rosto enigmático do rapaz que os contempla incutem-nos uma imensa vontade de desvendar um mistério mais do que provável.




A primeira associação conduz-nos, sem demora, a Ícaro, figura da mitologia grega, que um dia, na companhia do pai e munido das asas que este havia construído, voou em busca da liberdade. Todos conhecemos o desfecho da história do mito, cuja ânsia, ou sonho, de voar mais longe e mais alto acabaria por matá-lo.



A curiosidade engorda, muito antes das primeiras páginas. Terá este Ícaro, de Federico Delicado, semelhanças com o outro? Será esta uma história com asas, rumo à liberdade? Tratar-se-à de um Ícaro moderno, um símbolo de liberdade, capaz de concretizar o seu sonho?


A história revela-se uma alegoria à liberdade. À liberdade individual, que cada um pode experimentar soltando as amarras decorrentes de censuras e julgamentos alheios. Mas também ao sonho, à capacidade de nos evadirmos, em todos os momentos, para um qualquer lugar. Basta imaginar.



Uma metáfora gigante, alimentada por muitas outras, que resulta num livro belo e enigmático. Com o enorme mérito de deixar ao leitor a liberdade de escolher e de fantasiar as leituras possíveis. De enaltecer a forma como a forte componente metafórica habita tanto na linguagem textual como na pictórica. As deslumbrantes ilustrações de Federico Delicado remetem-nos para o universo do artista americano Edward Hopper. Curiosamente, o mesmo que Maurizio Quarello invoca numa das ilustrações de O autocarro de Rosa Parks, o último livro de que falámos. São assim os livros...



Tal como os pássaros da ilustração que dá rosto à capa do livro, a história começa com o pequeno rapaz privado de liberdade a ser questionado num centro de acolhimento. Não admira, portanto, que seja um início marcado por tons cinzas e sombrios. As fortes suspeitas de que o rapaz possa ter sido abandonado pelos pais, de que seja vítima de maus tratos, manifestam-se na postura da técnica que conduz o interrogatório.
Ícaro é, antes de mais, um rapaz inteligente, conhecedor do pensamento dos adultos e resiste, enquanto pode, a revelar o paradeiro dos pais. Está certo de que não vão acreditar nele. Quando, finalmente, cede e os localiza no Polo Norte, o leitor mais crédulo ainda acalenta a esperança de que tudo se possa esclarecer. Por pouco tempo, porém. 
À pergunta da técnica: "Por acaso os teus pais são cientistas?"
o  pequeno responde sem qualquer assombro: "Não, os meus pais são pássaros!"


Este é o mote para o inicio de outra história, que decorrerá paralelamente. Contada na primeira pessoa, com cores vivas e alegres, à semelhança dos bons momentos  vividos em família. Uma família que, através da genial subtileza do autor, descobrimos pobre mas feliz. A mãe costumava fazer um estufado que o rapaz não perdia por nada deste mundo. Batatas, água, uma pitada de sal e muito mistério.



Ícaro começa por relatar o dia em que o pai soube que a transformação já tinha começado. A alegria que invadiu a casa e como foi partilhada pelos três. Puxando o fio à meada, acaba desenrolando  a história de toda a famíliaDe todos os que conseguiram, um dia, dar asas ao sonho e se transformaram em pássaros. Ou não, como é o caso da tia Gregória!
  


A esta altura do livro fizemos já outra associação. São óbvias as coincidências com a obra de Kafka, A Metamorfose. Tal como a tia Gregória, também Gregor Samsa, a personagem criada por Kafka, acordou um dia com várias patas que o impediam sequer de se arrastar. O sofá onde se aninha o pai de Ícaro, a lembrar aquele outro que Kafka descreve existir no quarto de Gregor, bem como o lençol que utilizava para se ocultar não são, obviamente, coincidências.




À semelhança do que separa  o seu Ícaro do mito grego, o autor também aqui impõe as diferenças, abrindo a porta à esperança e ao sonho. Enquanto a personagem de Kafka, é votada ao abandono e à incompreensão por parte da família, só conseguindo  libertar-se através da morte, o pai de Ícaro é entusiasticamente apoiado pela mulher e pelo filho.




Talvez porque na família de Gregor Samsa não existissem crianças. O medo, a cobardia, a vergonha e os preconceitos estabelecidos que nortearam a família kafkiana cedem lugar, no livro de Federico Delicado, ao sonho, à coragem e à aceitação da diferença. 



Sentimentos que nos invadem a nós, leitores,  quando regressamos ao centro e à realidade do momento vivido pelo pequeno Ícaro. É notável e sublime o pormenor da gravidez da técnica que com uma das mãos parece proteger o feto de todas as atrocidades que está convencida terem sido cometidas contra Ícaro.



As crianças não têm de conhecer Ícaro ou ser íntimas de Kafka. Têm de conhecer livros fantásticos! Elas, que são, por regra, voadores exímios. 
Vencedor do VII Prémio Internacional de Compostela para Álbuns IlustradosÍcaro é um livro inteligente, construído de forma sublime, no que expressamente diz e no que deixa para imaginar. Uma das nossas escolhas 2014.



Acreditamos que, ainda que por fugazes momentos, todas as crianças têm um pai pássaro! Aqui fica o conselho do pai de Ícaro: "Nunca tenhas medo de voar."


2 comentários:

elvira disse...

Este livro é sublime e o post igualmente. Eu que esperava ser premiada com este livro por este blogue lá vou ter que dar asas à imaginação para o ter na minha biblioteca. Sim porque não há limite de idade para um BOM LIVRO!!!.

hipopómatos na lua disse...


Obrigada, querida Elvira. E sim, Ícaro é para todos!